Saltar para o conteúdo

Críticas

Cineplayers

Paixão versus Razão.

8,5

Cinco anos após Sangue Negro (There Will Be Blood, 2007), história que explorava a relação do homem com a terra onde pisa através da figura bruta e ameaçadora de Daniel Plainview, Paul Thomas Anderson volta em O Mestre (The Master, 2012), uma história tão característica de nossos tempos quanto aquela que o precedeu; parecendo suceder temporalmente a história, PTA troca a figura do self-made man pela confusa geração dos anos cinquenta, que cresceu em meio à Grande Depressão e lutou na Segunda Grande Guerra, encarnado na figura de Freddie Quell, um veterano da marinha americana que, após o conflito mundial, parece não encontrar seu lugar no mundo – uma premissa não muito diferente de Os Melhores Anos de Nossas Vidas (The Best Years of Our Lives, 1946), de William Wyler.

Porém, focado menos nas questões sociais, a viagem de Quell pelos Estados Unidos que não reconhece mais e que não é reconhecido pelo mesmo é muito mais introspectiva do que exteriorizada, o que acaba levando-o a encontrar Lancaster Dodd, um carismático líder religioso que fundou um culto conhecido apenas como A Causa – que, ao prometer através da hipnose regressiva fazer as pessoas se lembrarem de suas vidas passadas para se livrarem de seus males e doenças em sua atual encarnação, acaba seduzindo o desajeitado protagonista, alcoólatra e sujeito a surtos violentos. Freddie acaba se tornando um dos homens mais dedicados à causa através de seus longos, exaustivos e condicionantes rituais.

Não diferente de seus outros personagens ao longo de sua carreira, o protagonista de Joaquin Phoenix é um homem assolado por uma angústia interna, onde o choque com o mundo sempre deságua em obstinação e excessos por parte de personagens que, ainda que adultos, não conseguem lidar com a realidade e da relação nascida entre ela e seu ímpeto criativo e destrutivo irrefréavel. Seja Eddie Addams, que se metamorfoseia em Dirk Diggler para conquistar o mundo do pornô, seja Daniel Plainview, que constrói a imagem de um respeitado industrial e pai para construir seu império de petróleo, o desespero dos personagens de Anderson parte de sua própria obsessão irrefreável e sua frustração constante com organizações e estruturas maiores.

O Mestre se desenvolve de forma tensa e esquisita, amparado tanto pela trama narrada a conta-gotas, esmiuçando através de sua considerável metragem vários campos da personalidade de seu protagonista, quanto pela linguagem extremamente pessoal, apesar de referencial, de Paul Thomas Anderson, que descortina seus personagens não nos momentos de explosão, mas principalmente nos momentos solitários e de divagação; os primeiros minutos, senão fundamentais à trama, são essenciais em matéria de construção de personagem, e por consequência de atmosfera. Na enérgica atuação de Phoenix, encontramos a voz comum e distinta do universo de seu filme; Freddie, por maior dedicação e paixão que tenha à Causa, jamais consegue se adequar, com o figurino e a expressão corporal abatida e “torta”, distinguindo-o dos demais seguidores da causa; a disfuncionalidade também pode ser percebida pelas melodias e harmonias foras de padrão da trilha sonora de Johnny Greenwood, do Radiohead, que cria uma nova e distinta sensação de anti-épico, perturbado e distorcido, como também se via em Sangue Negro.

O novo antagonista e de certa forma personagem-título da obra responde por Lancaster Dodd, interpretado por Philip Seymour Hoffman. Homem carismático, ele é a completa antítese do descontrolado Freddie, a ira e insatisfação em estado bruto; homem calculado, apesar de inseguranças e angústias que lhe provocam frequentes irritações, é amparado por Peggy Dodd (Amy Adams), a  “grande mulher por trás do grande homem”: ela que encoraja, aconselha e suporta o líder da Causa. Os dois são unha e carne, cérebro e coração da organização; sua rigidez fanática constrói, ao longo do filme, um pequeno império de influência quando suas ideias encontram eco por burgueses novos-ricos. A reconstrução precisa de época revela-se extremamente necessária para que PTA possa expressar não apenas todos os rituais burgueses em plena ascensão, mas também da crise que tomava o pais no pós-guerra.

Se em Sangue Negro era encenada a batalha por terra entre Daniel Plainview e o pastor Eli Sunday pela conquista de uma terra que poderia ser vertida em dinheiro, O Mestre joga nas costas de Hoffman e Adams o papel de figuras de autoridade que tomariam os Estados Unidos de assalto – são os Estados Unidos à beira do McCarthismo, da Guerra do Vietnã, dos assassinatos de John F. Kennedy e Martin Luther King. Os indivíduos que formam o casal Dodd são dois bastiões da moral que, mesmo contestados por céticos, começam a construir um pequeno império religioso, econômico e moral.

A obra de PTA faísca o tempo todo em seu conflito; a dedicação de Quell não demora para ser substituída pela dúvida, pela insubordinação, pela busca da liberdade pessoal. O Mestre é, desde o primeiro enquadramento, um filme sufocante, que fecha no rosto de Joaquin um filme sutil em sua  violência; mesmo os momentos de explosão e conflito extremado, encenada de forma devastadora pelo diretor em sua cena mais intensa, é um apelo à introspecção, ao coração de dois homens diferentes que sentem uma simpatia mútua e que, por maior que seja a vontade, não conseguem entrar em sintonia; o instinto de Freddie e o autoritarismo de Lancaster são incompatíveis.

Característica de Anderson, suas câmeras sempre próximas demais sempre fazem Dodd crescer enquanto Quell é estraçalhado; o campo cinematográfico, ou seja, o espaço-tempo da encenação que circunda a câmera de O Mestre, é o humano, existe por causa dele. Ele não apenas perfura a paisagem para se erguer, como fazia o “monstro” Plainview: agora que o império existe por si, ele o distorce ao seu bel prazer; enquanto barcos, casas e auditórios são vertidos por Dodd em um modelo alternativo de vida, com A Causa surgindo como uma religião propícia à mentalidade voltada para crescimento, lucro, ostentação e consumo, onde as religiões anteriores não fazem mais sentido por não conseguirem curar os males da alma humana, conversas, veículos e reuniões são vertidos, para Quell, em uma expressão constante de sua liberdade, que jamais aceita todas as imposições de Dodd.

A cena do primeiro embate verbal entre Freddie e Lancaster é especialmente marcante; um quer dominar, seduzir e conquistar, enquanto o outro quer brincar, ridicularizar e recusar-se a levar a sério. Em um exercício simples de plano e contraplano, há uma lenta dissecação entre opressor e oprimido, entre mestre e servo, entre imposição e recusa. Um pequeno momento em particular, descolado da trama, expressa o conflito entre Quell e o sistema onde se estabeleceu, onde Lancaster canta e Freddie observa com um sorriso irônico. A distorção do mundo, ocorrida em uma intersecção de planos, mostra que debaixo daquele teto (grande, largo e pesado, como exibe a câmera contra-plongée – baixa e apontada para cima), a paixão do invíduo não descansa nunca.

Não apenas por seguir pouco tempo após o final de Sangue Negro e por repetir a figura do líder religioso, O Mestre dialoga com seu predecessor por olhar com ternura e uma nota melancólica a construção social de uma nação, através de capital, espírito e embate; mesmo a grandiosidade distante de um outro momento não isenta o filme de um caráter de lamento, onde não é cometido, a priori, um julgamento de seus protagonista e antagonista, que não necessariamente odeiam-se de morte. Pelo contrário, são mais próximos que imaginam ou gostariam de ser e acabam, no final das contas, resolvendo diplomaticamente suas diferenças.

No final, contriando a deseperadora reticência do “I'm finished!” de Daniel Plainview, O Mestre acaba sendo um grito de liberdade de um espírito jamais plenamente consciente de si ou responsável pelos seus atos. Inconsequente, jamais adaptado, disforme e aberrante, Quell distorce o ambiente e a atmosfera do filme, acrescenta-lhe curvas e imperfeições e jamais fecha o debate; resta apenas o mundo à frente, imenso, livre, caótico e ameaçador. A construção social recusa o livre e o selvagem; o cinema resgata-o, exibe-o à luz de refletores e projetores, descobre sua incoerência, seu lado que até ele mesmo teima em esconder, intercede com o processo da memória para que, mesmo recusando o pathos, alcance a redenção de seus miseráveis protagonistas.

Não tão grandioso, bem mais introspectivo e misterioso, O Mestre é a representação de uma eterna angústia humana em uma jornada interminável, com uma humanidade obsessiva e insatisfeita demais consigo mesmo para parar fixa no mesmo lugar e morrer – como a própria imagem em movimento, efêmera, sem amarras e sem gramática.

Se ao filme de PTA falta completude ou ponto final, é porque antes lhe sobra força vital e disposição para viajar até os cantos mais obscuros – seja da América, seja da alma do indivíduo. O infinito embate entre as duas instâncias, inserido na história crítica à manipulação espiritual, ao delírio de grandeza e às instituições organizadas é o que torna O Mestre tão forte e característico do seu autor, ainda comprovando, mais uma vez, a razão de ser um dos cineastas mais notórios de sua geração.

Comentários (22)

Angelão | domingo, 24 de Fevereiro de 2013 - 13:39

Nossa Brum, vi este filme ontem. Acabei de assisti-lo ás 11 horas da noite mas só consegui dormir lá pelas 3 da madrugada, tamanho o impacto que a obra me causou. Há muito o que se falar sobre ele, no entanto, a tua crítica conseguiu captar aquilo que a obra tinha de mais essencial. Parabéns, esta é, provavelmente, a melhor crítica destas terras.

Amaral Milhomem da Conceicao | quinta-feira, 22 de Agosto de 2013 - 20:37

O filme revela a incrível facilidade que temos de acreditar em qualquer coisa quando estamos debilitados emocionalmente. As sessões parecem óbvias e de cunho escuso, ainda assim é impossivel cravar que não nos aproximaríamos de certos movimentos sociais/religiosos com o intuito, não de aspirações espirituiais, e sim de auto afirmação em algum grupo acolhedor. Nãojulgo a cientologia ou as religiões geradas a partir de certas falhas de paradigmas no que acreditamos ser a sociedade ideal. Afinal parece que necessitamos a todo instante de figuras fraternais para alguma orientação sobre o trabalho, a vida pessoal ou mesmo questões mais triviais, somos propensos demasiadamente a seguir, crendo ou não, em algum Mestre. E é aí que mora o perigo.

Alexandre Marcello de Figueiredo | quarta-feira, 15 de Janeiro de 2014 - 22:38

Os arroubos de insanidade e a angústia de Quell (Joaquin Phoenix) são o ponto alto do filme.

Faça login para comentar.