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Mestres Loucos, Os

(Maîtres Fous, Les, 1955)
7,0
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Críticas

Cineplayers

Escamoteamento do real ou esculhambação política? Cinema do brabo

10,0

Documentário etnográfico pancada onde Jean Rouch expõe o entrechoque sociocultural e político escroto do imperialismo inglês com o continente africano na figuração de um ritual como simbolismo à violência capitalista estrangeira.

Jean Rouch. Grande diretor inovador de documentários etnográficos via antropologia, que buscava uma nova visão e distinção do outro a ser filmado. Aqui em uma de suas melhores e mais chocantes obras.

O trato acerca das relações dialéticas entre dominadores e dominados através do viés cinematográfico. Mestres Loucos. Rouch compôs-se como um dos criadores do cinema etnográfico buscando uma perspectiva sociocultural que fosse voltada para entrechoque cultural do cinema para com as classes populares. Estas filmadas por ele em uma disposição entre o homem e seu meio social, diante de suas elucubrações imagéticas acerca da vivência dos povos africanos sob o jugo imperialista. Neste caso, o Imperialismo Inglês na Costa do Ouro (renomeada como República do Gana em sua independência em 1957). 

Um ritual. Seita dos Haoukas. Onde são expostos, inicialmente, os conflitos entre os jovens quando aportam na cidade de Acra (principal cidade da Costa do Ouro) e diante do reflexo violento que o imperialismo causara nessa civilização, os cidadãos são expostos por Rouch em seus afazeres do dia-a-dia. Acra pode ser considerada como um microcosmo da exploração existente na Costa do Ouro no período dos anos 50, onde a representação das criaturas humanas são compostas por trabalhadores explorados nas mais diversas funções dos labores da cidade.

Somos conduzidos para fora da cidade onde será expresso o ritual proposto. Rouch já expõe seu modus operandi analítico aqui explicitando aspectos de intenção do ritual nos mostrando algumas influências visuais imperiais inglesas, como a figura, em forma de um boneco, do “Governador”, figura representativa do controle de Acra. 

O castigo aos pecadores é proposto para que se tenha uma purificação ritualística, que logo após começar-se-iam os transes corporais de vários componentes dos Haoukas em figuras análogas do imperialismo britânico (figuras primordialmente do fim do século XIX). Aqui já somos contemplados pelo aspecto extremamente hierárquico militar do imperialismo onde peças como “Governador”, “General”, “Tenente” são algumas das quais reagem e regem o ritual de forma a respeitar plenamente a hierarquia de suas posições. Uma encenação da ordem colonialista é explicitada aqui. Uma espécie de absorção cultural é vista como um confronto dialético diante da questão das vivências dos Haoukas em Acra. 

Fica clara a crítica de Rouch quando ele expõe um trecho de um desfile britânico comparando-o com o ritual Haouka e como os mesmos se assimilam em seus devaneios por controle de estado e situação. 

A dominação cultural/política/econômica/social é posta em claras vias aqui exatamente neste transe onde se enxerga o adentrar de uma determinada cultura pela força em outra. Ao invadir e buscar controlá-la, a afetará nos mais diversificados aspectos. Mesmo em rituais tribais mas específicos, onde visar-se-iam transpor tradições concatenadas, em nível subconsciente dos afetados, por partícipes oriundos da exploração inglesa. Podendo afetar, assim, a força de uma questão identitária. 

Rouch e sua câmera na mão. O ideário que o Cinema Novo brasileiro tanto defendia, e este cara já manjava dessas putarias (que realmente serviram de referência à vertente nacional). O autor usa sua câmera incessante e poderosa (curioso saber que Rouch creditava ser mais fácil filmar em cores por se achar um péssimo fotógrafo para o preto e branco e por buscar mais praticidade) para ironizar as questões dos anseios à trivialidades do aporte dominante inglês onde identifica alguns motes dentro do ritual. Como uma reunião a respeito da limpeza de um palácio, onde há discussões sobre como está o palácio e quem será punido por ele estar com algum problema. Aqui numa clara alusão às questões dos devaneios nas intrigas administrativas palacianas de cunho imperial. 

O radicalismo de Rouch ao filmar o sacrifício do cão é salutar. A uma certa altura o ritual pede um sacrifício com vias a se fortalecer os Haoukas na conjuntura do deleite de se comer um cão, que por ser proibitivo e, assim, sendo tabu representaria a tais comedores maior força para os Haoukas. Esta representação dialoga com a constituição análoga do controle imperialista no que tange ao imperativo no relacionar hierárquico novamente. Acerca do sacrifício animal, partes corporais do mesmo são escolhidas para alguns membros de maior poder enquanto um dos participantes questiona que o animal deve ser repartido com quem não presenciou o momento. Sempre visando a questão do usufruto das questões de cúpula de controle. 

A questão hierárquica como crítica de Rouch aqui como o cerne principal, realmente da obra sempre identificado no transcrever cultural no aprofundamento das relações.

Ao fim do ritual é demonstrada sua veemência crítica no direcionamento comparativo das figuras sociais com seus respectivos personagens de transe. Onde o personagem “General” é representado no ritual por um policial de Acra, aqui numa alusão, as já referendadas aqui, situações análogas do ritual com as formas de dominação estrangeira. Uma questão de influências e trocas dentro e fora do transe de maneira subconsciente. 

Assim é proposto que não existam ainda “remédios” que componham uma forma de pôr estas pessoas em sociedade sem explorá-las. Onde viesse a existir uma justa associação em sociedade. Coisa que até hoje os ranços dos conservadorismos reacionários atrelados ao crescimento do capitalismo desenfreado não deixam enxergar, ou minimamente nem visam buscar entender as necessidades e os anseios do outro. Botou pra foder Jean Rouch.

Armado numa quinta-feira, no 29 de janeiro de 2015.

Tirando o título, não mudei porra nenhuma do texto acima. O fiz em 2015. Lá está de forma ipsis litteris. Mediante tempos de ressignificações estéticas e sequestros de narrativas histórico-políticas, debates são necessários. Sobre isso um comentário meu em pleno – e macabroso – 2020.

O Jean Rouch tinha uma visão radical de cinema. Brutal. E usava dos mais variados artifícios e experimentos para mostrar o que diabos é o cinema verdade – o tal cinéma vérité. "Não existe a verdade no Cinema. Existe a verdade do Cinema", este era o mote. E isto se encaixa perfeitamente ao exemplo proposto nesta obra. Os nativos realmente entraram na onda em seu ritual sob influência de qualquer putaria que seja e com resposta psicológico-histórica no colonialismo inglês? Ou esta é uma visão antropológica distorcida – propositalmente – pelo diretor numa demonstração de discurso anticolonialista (sendo o próprio descendente dum país colonizador brancoso), mas tirando o real entendimento do ritual? Assim ele agiria de maneira escusa, mas ainda assim enriqueceria o debate exatamente sobre as escolhas da verdade do cinema. O que temos aqui? Uma verdade invocada ou imagens chocantes independentemente da tal verdade contida?

Os Haouka. A exposição da violência. A tribo nos aplaca com práticas desconhecidas a nós – que não temos e nem queremos ter compreensão e apressamo-nos em julgá-las como primitivas, bárbaras e os caralhos. E por termos a nossa sapiência ocidentalizada orquestrada através de gerações de religiosidade cristã que se fincaram em todos os elementos possíveis da vivência, tudo aquilo que avacalha esta zona de conforto logo nos traz uma sensação de desespero mediante o desconhecido. E isto se materializa pela violência sobre o diferente, sempre em busca de ressignificá-lo e domesticá-lo ao nosso conforto. E nós como descendentes de colonizadores – e de sua influência colonial escrota – existimos para apontar onde se encaixa o marco civilizatório branco? Rouch usa deste artifício crítico moldando sua narrativa diante duma violência grosseira. E é dentro desta narrativa que a influência branca adentra ferozmente em sua cultura. Se a utilização disto fora proposital e chocante sem se ater aos fatos do real significado da questão, Rouch teria sido um crítico sagaz, mas também um escroto de marcar maior ao escamotear a cultura local ao seu jugo cultural de intelectual branco buscando montar um filme pesado num mosaico crítico funcional. Ele responde alguma destas questões? Não. Há provas intrinsecamente cabais de que aquele ritual filmado e montado na marra ali é de fato uma alusão ao colonialismo em África? Não. A verdade do cinema mantém-se na sujeira do desconhecido humano, mas sem negar o morticínio sobre aquele país. Aí mora a importância deste filme. Tanto como elemento de disputa colonizatória tanto quanto como debate acerca dos limites aos quais o cinema documental pode ascender e transcender. Mau-caratismo? E eu sou desses ruins mesmo. Já que em documentário pode é tudo.

Ao final mais um sinal de superioridade não disfarçada quando se pergunta quando os africanos vão conhecer remédios que os conectem normalmente ao seu meio. Além de cooptado o ritual é antinatural. Se for uma mentira, é bem contada demais, e canalha. Se for real, é um cinismo macabro e trágico. De todo jeito, acaba sendo uma experiência sensorial como poucas vezes fora vista. Afirmo isto com invulgar disposição ao esculhambatório manipulador que é o cinema.     

Texto integrante do especial Cinemas Negros

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