Saltar para o conteúdo

Críticas

Cineplayers

O homem e seu interior.

8,0

David Cronenberg distante do filme de gênero. Durante décadas, o cinema se habituou ao diretor canadense lidando com o horror, a ficção, o thriller, o policial e o filme de ação. Um Método Perigoso (A Dangerous Method, 2011) se volta para o estudo do interior humano, algo com que Cronenberg sempre trabalhou, nas fronteiras com que se manifestam a natureza sexual, violenta e perturbadora dos personagens de sua filmografia. O cineasta leva agora à superfície de seu cinema o embrião da psicanálise como ciência com as pesquisas dos dois pioneiros Carl Jung (Michael Fassbender) e Sigmund Freud (Viggo Mortensen), e os embates do primeiro com o segundo, mas sobretudo de Jung com a sua paciente, amante e autora de certa influência Sabina Spielrein (Keira Knightley).

Não poderia se esperar de Cronenberg uma cinebiografia convencional ou romantização esquemática em torno desse período especifico do surgimento da psicanálise. O cineasta se apóia na peça The Talking Cure, de Christopher Hampton (que escreveu certamente aproveitando a vasta documentação dos relatos contidos nas cartas trocadas entre os três personagens reais), adaptada aqui pelo próprio autor, que já havia feito o mesmo em cima de outro cânone das relações humanas intrincadas, a versão do romance epistolar clássico de Choderlos de Laclos que gerou Ligações Perigosas (Dangerous Liaisons, 1988). Coube ao canadense driblar a origem teatral na encenação do material (acredito que ninguém é capaz de perceber a procedência diante dos planos filmados por Cronenberg), aproveitando a força que o texto proporcionou em termos de dramaturgia.

Fadado a provocar um distanciamento ou mesmo uma incompreensão dos fãs mais ortodoxos de Cronenberg, como um objeto estranho na filmografia do diretor, nesse seu mais recente trabalho os monstros são prisioneiros de suas psiques. Se grande parte da obra do canadense é amplamente reconhecida como cinema sobre corpos e suas deformações, e do homem criando uma nova forma de se relacionar com o mundo, geralmente, mas não somente, com a ajuda da ciência (e cada qual a seu modo inventando um universo específico bastante particular), este Um Método Perigoso seria sobretudo sobre almas que se pretende devassar (psicologicamente falando). Almas arruinadas em oposição aos corpos em putrefação de suas ficções de horror explícitos. 

Essa dicotomia é, na verdade, o cerne de Um Método Perigoso, um recorte dos dez anos da amizade, trocas de cartas e experiências e posterior rompimento de Jung e Freud, pela contrariedade que o espiritualista Jung (que buscava o transcendente, o que o levaria ao conceito do inconsciente coletivo) passou a provocar em Freud e sua chamada “obsessão” pelo corpo e pelo sexo. Freud é o antagonista em Um Método Perigoso, seu triunfo se dá pela razão que a História lhe proporcionaria no futuro. Sua presença no filme de Cronenberg é mais como uma sombra inescapável. Ele formulara a teoria do desejo sexual como determinante do comportamento humano, enquanto que Jung é um dos primeiros de seus pupilos a colocar em prática experiências em torno dessa tese. O filme começa com a judia russa Sabina em uma crise de histeria, o rosto em primeiro plano, sua boca e face se retorcendo, o que logo se descobrirá como uma pulsão querendo tomar seu corpo (ou se libertar dele). Jung começa a tratá-la, e com ela se dá uma primeira comprovação das teorias freudianas: as suas perturbações se davam por um inevitável e secreto prazer sexual, como um sentimento latente e indesejado, decorrentes dos flagelos e castigos físicos de seu pai, o que médico e paciente repetirão num processo em que se não se distingue cura ou simples perversão de uma relação que fugiu do controle. Sempre corpos que se digladiam, se esfacelam, se transformam.

É preciso observar também que Um Método Perigoso retrata uma época (começo do século XX) que parece fim de civilização, e começo de outra. Era um tempo de vanguardas artísticas, e aprofundamento de estudos em torno de conceitos como a psicanálise, o socialismo, teoria da relatividade etc., mas que caminhava para a barbárie das duas grandes guerras mundiais, e os desenvolvimentos científicos e tecnológicos que viriam depois delas, talvez não acompanhados de um avanço paralelo no campo das relações humanas, éticas e sociais, sempre com a possibilidade do homem se render às ferramentas proporcionadas por técnicas desumanizadoras. Um Método Perigoso seria então um retorno necessário a uma época em que se começava a aprofundar a busca do conhecimento do interior humano, procura essa que no fundo norteia toda a obra de um autor como David Cronenberg.

Comentários (0)

Faça login para comentar.