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Críticas

Cineplayers

Reinações da imaginação.

9,0

Ele é grande, dorminhoco, fofo, risonho, travesso e bastante misterioso. Mora na floresta, tem um ônibus-gato, sabe voar e some antes que qualquer um possa notar. Quando se procura por ele, não o acha; mas quando menos se espera sua presença, ele simplesmente aparece. Somente as crianças podem vê-lo, e não à toa. Totoro é uma criatura tão fantástica, e além de qualquer interpretação definitiva, que não é de admirar que sua existência só possa parecer possível e palpável em um universo regido pela imaginação de uma criança. No entanto, nasceu da imaginação de um criador único do cinema, Hayao Miyazaki, e integra o grupo de inúmeros personagens marcantes que hoje habitam os corações de uma legião de cinéfilos apaixonados pelo mundo de sonhos tornados realidade através de seus traços e cores que parecem nunca se apagar da memória. Totoro é, em poucas palavras, um sonho de criança.

Hoje, ele é o mascote do famoso Estúdio Ghibli, fundado em parte pelo próprio Miyazaki, e se mostra a escolha ideal para representá-lo. Aparece poucas vezes durante o filme que leva seu nome, Meu Amigo Totoro (Tonari no Totoro, 1988), mas é o suficiente para espalhar uma atração magnética em volta de sua figura estranhamente cativante, e personifica aquilo que a maioria das crianças procura idealizar em seus universos particulares: um melhor amigo imaginário. Não é de se surpreender então que a natureza de sua figura, bastante enigmática por se manter em cima daquela linha entre realidade e fantasia, represente também a válvula de escape que todos durante essa época da vida procuram criar, às vezes até inconscientemente. Totoro é uma espécie de porta para um universo muito mais interessante e infinito do que o nosso, uma passagem para esse mundo onde a imaginação reina e reconforta os que procuram fugir das duras tristezas da cinzenta realidade.

No caso das pequenas Mei e Satsuki, duas garotas hiperativas que acabam de se mudar para o interior com o pai, Totoro assumirá um significado ainda maior. A mãe dessas meninas está muito adoecida em um hospital próximo à nova casa, e sua ausência cala fundo dentro de ambas, mesmo que na maior parte do tempo isso não fique evidente. Durante uma tarde, enquanto Satsuki está na escola e seu pai está trabalhando, Mei se aventura pela floresta que circunda seu quintal e encontra uma passagem estreita que leva ao local de morada do protetor da floresta, Totoro – uma sequencia que remete ao clássico Alice No País das Maravilhas (Alice in Wonderland, 1951). Nasce desse encontro uma amizade singela, mesmo sendo Totoro uma figura tão desengonçada e de raras aparições.

O êxodo urbano e o colorido que nasce dessa viva paisagem campestre são dois temas que funcionam bem sob a ótica de Miyazaki, um eterno defensor do meio ambiente, um tanto avesso à exposição das crianças ao excesso de tecnologia do mundo moderno. Como a maioria dos seus filmes deixam claro, a felicidade reside nas coisas simples da vida, sendo que na mente de uma criança – e com a ajuda do cinema – essas mesmas coisas podem ganhar contornos fantásticos e mais interessantes. Na simplicidade tão singela e tocante de seus filmes, nada é impossível. Talvez por isso ele tenha optado em se especializar em animações, gênero cinematográfico em que não existem limites, e onde a imaginação pode encontrar o local ideal para expandir e se concretizar.

Paralelo às aventuras extasiantes vividas pelas garotas ao lado de Totoro (entre elas voar ao redor de uma árvore gigante, dançar e passear dentro de um ônibus-gato), existe a dura realidade de ter uma mãe em estado crítico no hospital. A maneira como Miyazaki aborda essa inquietação que corrói suas pequenas protagonistas é bastante sutil, nunca apelativa, e extremamente tocante. Na reta final do filme, o diretor converge esses dois extremos – o da realidade e o da fantasia – ao criar a situação em que Mei e Satsuki, desesperadas a procurar pela mãe e pelo pai depois de uma má notícia, se perdem na floresta e não conseguem achar o caminho do hospital ou mesmo o caminho de volta para a casa. É então que Totoro faz sua aparição mais importante, rompendo de vez a barreira de realidade e ficção e salvando suas duas amigas da difícil situação - quando a fantasia prevalece e se mostra capaz de salvar. 

Os traços certeiros, a explosão de cores em plena sintonia e a história inocente fazem de Meu Amigo Totoro uma animação exclusiva. Aborda uma verdade muito linda presente na infância, quando a única opção de uma criança diante de uma dificuldade ou trauma é sonhar com um escape, criar na imaginação uma realidade paralela e projetar nesse novo mundo uma rota de fuga para seus problemas ou mesmo uma forma para entender o funcionamento das coisas (abordagem também presente em trabalhos como Onde Vivem os Monstros [Where the Wild Things Are, 2009] e A História Sem Fim [Die Unendliche Geschichte, 1984]) – uma verdade corroborada por Fernando Pessoa, no trecho do poema Dactilografia: “Temos todos duas vidas: A verdadeira, que é a que sonhamos na infância, e que continuamos sonhando, adultos, num substrato de névoa; A falsa, que é a que vivemos em convivência com outros, que é a prática, a útil (...)”. Quem cresceu e ainda se lembra desses anos vividos dentro de uma “dimensão paralela” entenderá a beleza de apreciar Meu Amigo Totoro como uma forma de retorno ao mundo que deixamos para trás depois de crescidos, mas que permanece sempre dentro de nós a nos ajudar a encarar todo dia a nossa vida real, que, segundo o poema mencionado, na verdade se trata da vida falsa; porque a verdadeira permanece nos sonhos e na imaginação, onde tudo de bom e de desejado de fato acontece e traz felicidade, mesmo que esta esteja representada na forma de um amigo querido; ou no caso, um Totoro.

Comentários (18)

Polyanne Souto de Brito | sábado, 08 de Setembro de 2012 - 08:53

Gostei muito da crítica. Já vi todos os incríveis filmes de Miyazaki e Totoro é meu favoritíssimo...
Recomendo muito "Nausicca do Vale vento" e "Only yesterday" que é Ghibli mas de outro diretor.
😉

Patrick Corrêa | segunda-feira, 25 de Fevereiro de 2013 - 17:28

Crítica maravilhosa. O filme merecia um texto tão lindo como esse.
Adorei, Heitor!

Mathias Reis | sábado, 25 de Maio de 2013 - 12:58

Excelente filme, excelente seu texto, muito sensível. Parabéns!

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