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Críticas

Cineplayers

O sofrimento cantado.

6,0

O maior dos desafios encontrados por Tom Hooper de trazer para as telonas uma versão decente da aclamada história de Victor Hugo era conseguir se desvencilhar o máximo possível de qualquer recurso que não fosse, por excelência, cinematográfico. Primeiro, porque ele se baseia não diretamente no romance Les Misérables, lançado em 1862, mas sim no musical homônimo da Broadway, e isso acarreta consigo muita influência tanto literária quanto teatral. É a adaptação de uma adaptação, e se essa transição da palavra escrita para a palavra cantada foi tão natural e bem recebida por público e crítica, a pressão era dobrada para que nos cinemas a história conseguisse se manter forte e impactante tanto quanto se mostrou em suas outras formas. E, como todos sabem, muita coisa se perde e muita coisa se ganha nesses tipos de adaptação, e por isso resta a nós embarcar na proposta e entender as opções escolhidas por Hooper em seu novo Os Miseráveis (Les Misérabels, 2012).

Depois de provar que era quadrado o suficiente para agradar os membros da Academia com o vencedor do Oscar O Discurso do Rei (The King’s Speech, 2010), Tom Hooper se mostrou a escolha mais apontada para dirigir uma produção milionária, filmada em IMAX, sobre um dos clássicos mais adorados da literatura francesa e dos palcos americanos, mesmo porque nenhum filme recente que tentou adaptar essa história se mostrou ao menos decente, como a versão mambembe de Bille August em 1998, com Uma Thurman no papel de Fantine, Liam Neeson como Jean Valjean, Geoffrey Rush como Inspetor Javert e Claire Danes como Cosette. Faltava então ao cinema uma versão arrebatadora, definitiva, que estivesse à altura do livro e da peça. E por incrível que pareça, por mais que Hooper se mostre frio e muitas vezes inofensivo, foi esse seu comedimento que fez de Os Miseráveis um filme pé no chão, mesmo com todos seus excessos.

Sua primeira e mais ambiciosa escolha foi manter-se fiel à peça musical, e não diretamente ao livro, o que implica deixar de lado muita história e também toda a preocupação de Victor Hugo em retratar com afinco o panorama social da França pós-revolucionária, que ainda sofria com o abuso de poder apesar dos diretos conquistados anos antes através de muito sangue e sofrimento. No caso, esse não é seu maior foco, apesar do pano de fundo histórico se manter presente o tempo todo, como não poderia deixar de ser. O grande foco da produção está bastante ligado ao que o próprio título da obra denuncia, todo o sofrimento de personagens marginalizados, miseráveis e sem razão nenhuma para lutar contra as injustiças que sofrem diariamente. E para potencializar a agonia e tristeza da vida desses personagens, o diretor optou seguir pelo caminho da música, e por isso cada singular passagem deste filme é cantada, apenas cantada, jamais dialogada – para muitos esse foi o seu maior erro, enquanto para outros sua escolha mais ambiciosa e digna de nota.

Contar através de incessantes números musicais uma história tão pesada como a de Os Miseráveis é uma tarefa hercúlea de se executar através do cinema. Num palco de teatro as músicas se tornam até necessárias e jamais incomodam, mas através de um filme isso pode se tornar um empecilho para quem não tem a mínima paciência de ficar três horas ouvindo uma infinidade de personagens sofrendo enquanto cantam. Isso porque o cinema disponibiliza alguns recursos não encontrados em livros ou em palcos capazes de potencializar os efeitos dramáticos, como por exemplo, os close-ups, que aqui são usados exaustivamente por Hooper. Na ânsia de eliminar o aspecto teatral da obra e provar que sua adaptação para o cinema era necessária e que muito acrescentaria à obra, o diretor aposta o tempo todo em cenas intimistas, de ambientes fechados, com um excesso de close-ups na cara dos atores, aproveitando ao máximo cada nuance dos personagens, cada expressão corporal de seu vasto elenco, em detrimento de cenas em cenários muito abertos ou em planos gerais (que poderiam ser muitos, dado o material oferecido pela história original, com todas as revoluções em ruas públicas). Essas infinidades de planos fechados, com a cara dos atores preenchendo a tela por completo de fato potencializam todo aquele sofrimento, mas chega uma hora que começam a incomodar, querendo ou não.

No entanto, esse não é nem o grande problema de toda a produção, até porque nota-se aí a boa intenção de Hooper e a relevância da obra, por menor que seja para alguns. A grande questão é a falta de habilidade em aproveitar melhor essas três horas de filme, dado todo o material extenso que ele tinha em mãos. Tudo é acelerado demais no começo, com uma série de eventos importantes da trama acontecendo sucessivamente, sem que o público tenha tempo de digerir e compreender o conflito inicial da história. Em pouco mais de dez minutos de metragem Jean Valjean (Hugh Jackman em grande atuação, jamais exagerada, apesar dos números musicais exacerbados) sofre nas mãos do Inspetor Javert (Russel Crowe), consegue sua liberdade condicional, é acolhido por um padre, rouba o padre, é acusado de novo, é salvo de novo pelo padre, supera seu ódio pelo mundo, passam-se oito anos, vira um rico prefeito, conhece Fantine (Anne Hathaway), Fantine perde o emprego, vai parar na rua e é obrigada a se prostituir para sustentar sua filha Cosette (Isabelle Allen). Ufa! Tudo isso, que no livro leva uma infinidade de páginas para acontecer e que na peça consome um ato inteiro, se passa em dinâmicos dez ou vinte minutos de filme. Depois, para preencher as mais de duas horas que ainda restam, Hooper dispersa sua trama e a estica o máximo que pode em números musicais cada vez mais exagerados e algumas vezes desnecessariamente longos (como o comandado por Helena Bonham Carter e Sacha Baron Cohen, nos papéis de duas figuras excêntricas e picaretas que pouco acrescentam à trama, senão para servir como certa descontração cômica que alivia um pouco o clima pesado da obra).

E se a intenção era apostar tanto nesses números musicais, a escalação de Anne Hathaway foi certeira, com a atriz num tour de force admirável ao interpretar a dificílima canção I Dreamed a Dream (certamente o melhor número do filme), enquanto Russel Crowe jamais consegue alcançar as notas mais altas de suas canções, soando por vezes despreparado e, falando francamente, uma escolha duvidosa para o papel. Havia mesmo essa intenção de que os números musicais não soassem tão perfeitos, já que em uma história de personagens tão desafortunados não poderia se esperar um padrão colorido e romantizado; pelo contrário, a música deveria realçar suas condições de miseráveis. Mas mesmo assim, o resultado nem sempre é satisfatório, e o tratamento dado para certos personagens é limitado. Cosette, que na fase adulta é interpretada por Amanda Seyfried, talvez seja a única que tenha sua importância de fato realçada. Sabiamente colocada como coadjuvante de pouca participação, mas importância primária (um elo que ultrapassa os anos dos dois primeiros atos entre Fantine e Valjean), ela é o símbolo de esperança e redenção criado por Victor Hugo, talvez um escape e uma chance de um final feliz que jamais poderia ser previsto nos primeiros momentos da história.

Mas apesar de seus erros, Hooper deu um passo à frente em sua carreira (não que isso signifique muita coisa), e conseguiu na medida do possível retratar a realidade triste de um punhado de personagens complexos e eternizados pelos anos. Em um filme tão rodeado de marketing e recursos técnicos primorosos usados como chamariz para o público (dessas perfumarias hoje cada vez mais comuns colocadas para maquiar histórias vazias), Hooper conseguiu transmitir a sujeira e podridão de uma sociedade, assim como exprimiu bem os sentimentos de personagens que viram seus sonhos morrerem e que tiveram de aprender não apenas a lidar com a vida, mas a superá-la – quando o ato de viver passa a ser apenas mecânico e impessoal. Se ficasse bonitinho e inofensivo demais, com toda a firula estética passando a impressão de grandiosidade, certamente a obra original de Victor Hugo estaria sendo traída. Mas, mesmo em seus limites, Hooper foi capaz de transmitir em cinema, e com qualidade, uma poderosa história que até hoje só tinha ganhado vida relevante nos livros e nos palcos.

Comentários (30)

Adriano Augusto dos Santos | domingo, 24 de Fevereiro de 2013 - 09:37

Lindissimo,quase do mesmo nível do musical teatral.
Apenas Cosette e Thenardier ficaram abaixo.E Valjean também,pois o outro,meu Deus...

Adriano Augusto dos Santos | domingo, 24 de Fevereiro de 2013 - 09:37

Lindissimo,quase do mesmo nível do musical teatral.
Apenas Cosette e Thenardier ficaram abaixo.E Valjean também,pois o outro,meu Deus...

Rafael Martins de Oliveira | quinta-feira, 25 de Julho de 2013 - 19:56

Gostei, mas os diálogos cantados me incomodaram bastante. Anne Hathaway ficou pouco tempo em cena, Fantine podia ter sido melhor desenvolvida. E Hugh Jackman estava excepcional, já nosso amigo "Maximus", bom, melhor deixar pra lá.

Marlon Tolksdorf | terça-feira, 27 de Maio de 2014 - 10:18

Maximus ainda está atrás de sua vingança. Nesta vida, ou na outra. Neste filme, ou no próximo.

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