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Críticas

Cineplayers

Mais um divertidíssimo trabalho do genial Woody Allen.

7,5

Que Woody Allen é um dos autores mais geniais ainda em atividade no cinema, todo mundo já deve estar careca de saber. Dono de uma filmografia invejável, tanto em número quanto na qualidade de seus trabalhos (poderia afirmar com convicção que pelo menos cinco obras-primas o judeuzinho fez), Allen consegue trabalhar com propriedade invejável tanto na vertente cômica da arte quanto na dramática - algo que se apresenta cada vez mais difícil de acontecer atualmente. Sua carreira pode ser dividida por etapas, nas quais produziu filmes bastante diferentes entre si (tendo mantido um padrão de qualidade inferível em quase todas elas – a exceção fica por conta do período negro de sua criatividade, que ocorreu entre a pequena obra-prima autodestrutiva Desconstruindo Harry, de 1997, até a retomada de sua veia dramática com Match Point, em 2005).

Dentro destas etapas, destes segmentos de tempo nos quais Woody costurava seus trabalhos de forma muito semelhante entre si - principalmente no que diz respeito ao estilo narrativo -, existe uma que poucas vezes é lembrada como sendo merecedora da memorabilidade que adorna o bruto de sua filmografia. Trato do período em que Allen, após o polêmico rompimento do matrimônio com sua esposa na época, a atriz Mia Farrow (com a qual fizera mais de uma dezena de filmes), optou por se abster completamente das pretensões dramáticas e existencialistas intelectualizada, que haviam se tornado marca registrada de suas obras, concentrando esforços em um único objetivo: entreter, de maneira simples e objetiva possível, porém, sem soar burro ou minimalista em momento algum – muito pelo contrário, grande parte das obras deste período foram construídas sobre argumentos sólidos e bastante inteligentes, pincelados sofisticadamente com diversas características de autor.

Um Misterioso Assassinato em Manhattan, que pode ser considerado como pontapé inicial deste período menos pretensioso da vida artística de Allen, também é uma obra de arte cômica esplendorosa, que brinca com muita classe com diversos elementos daquele velho estilo de suspense levado às massas pelo grande mestre Alfred Hitchcock, no qual as tramas procuravam trazer cidadãos comuns (vide a obra-prima síntese da sétima arte, Janela Indiscreta) fazendo as vezes de investigadores particulares, normalmente impulsionados por algum fato de incisiva importância em suas vidas. A partir de uma premissa simples e até mesmo banal hoje em dia – mulher suspeita que vizinho matou a esposa e começa a investigar o caso por contra própria, tentando ao mesmo tempo convencer o marido de que o crime realmente aconteceu e fazendo com que aos poucos ele também se envolva na loucura -, Allen constrói uma comédia inteligente, recheada de ótimos e impagáveis diálogos e situações cômicas que brotam na tela de forma intensa a todo momento.

É exatamente esta premissa simples da qual parte o filme que demonstra a capacidade singular do diretor em extrair humor das banalidades da vida cotidiana, uma característica que já faz parte de sua idiossincrasia cinematográfica desde os tempos em que realizava sua maior obra-prima, Annie Hall. Trabalhando em cima de uma pequena crítica/sátira social a respeito do vazio encontrado na vida dos casais de classe média da sociedade moderna (a obsessão pelo caso simplesmente ocorre em virtude de o fato ser um diferencial no morno relacionamento da dupla), Woody brinca o tempo todo com a inter-relação entre marido e mulher, que, no fim, pode muito bem ser considerada uma análise das dificuldades encontradas em seu casamento com Diane Keaton, durante a década de 1970 – já que a atriz voltaria a contracenar com ele neste filme depois de quase 15 anos sem fazê-lo (um retorno no mínimo magnificente, já que Keaton é simplesmente a mulher mais engraçada que já pintou na telona). 

Allen, como já é de costume , interpreta em Um Misterioso Assassinato em Manhattan aquela típica persona cinematográfica sua: o nova yorkino judeu, intelectual, neurótico e extremamente irônico, estigma com o qual convive desde o início da carreira – aliás, estas características já viraram marca registrada do autor, muitas vezes rendendo comentários de que, na verdade, nada mais seria do que uma representação de sua própria figura da vida real (algo que ele nega fervoros amente). O ator (no caso) ficau famoso também pelo estilo de humor corrosivo e veloz, com frases curtas e piadas extremamente sutis e sarcásticas, algo que permanece em voga neste trabalho – e rende ótimas e divertidíssimas seqüências, como sempre, aliado à característica singularmente atribuída ao personagem deste filme, muito mais medroso e, por incrível que pareça, inseguro, do que o habitual (o que sugere uma espécie de contraponto à alucinada vontade de sua esposa em desvendar o mistério, transformando-o no ponto frágil da relação – e explorando o fato muito bem).

Mas não é apenas de humor que a obra se sustenta. Muito embora a narrativa seja construída com pretextos totalmente voltados para a comicidade, a trama de suspense criada por Allen possui forma muito bem delineada, com todas aquelas qualidades clássicas que constituem um bom filme do gênero: densidade de personagens, situações inusitadas, reviravoltas surpreendentes e uma construção impecável da ambientalização, dos cenários e de toda a motivação do enredo - transformando o filme não apenas em uma sátira, mas numa obra completa, independente de qual seja a visão utilizada para analisá-la. Outro ponto extremamente interessante a ser suscitado é o referencialismo que Allen utiliza para com as obras clássicas do gênero, como o supracitado Janela Indiscreta, o clássico noir Pacto de Sangue, de Billy Wilder, e, principalmente, o também noir (e também excelente, por sinal) A Dama de Shangai, de Orson Welles, do qual Allen recria de maneira extremamente criativa a famosíssima seqüência final – semelhantemente àquilo que fez com Casablanca em seu excepcional Sonhos de um Sedutor).

Já quanto à parte técnica, Um Misterioso Assassinato em Manhattan também apresenta qualidades impecáveis. Fotografada com excelência pelo habitual companheiro do diretor, Carlo Di Palma (com o qual trabalhou durante cerca de dezoito anos, em obras como Hannah e Suas Irmãs, Todos Dizem Eu Te Amo e Tiros na Broadway), a fita é conduzida de forma leve, despretensiosa, mas possui uma utilização excepcional de recursos como a câmera-de-mão, bastante funcional nas cenas de maior tensão (cômica), e longos travellings, que passeiam pelos cenários de forma solta e sempre muito bem elaborada. Além disso, Di Palma se mune de uma paleta de cores fortes que realçam os ambientes, tanto externos quanto internos, acentuando o clima outonal da obra – que é predominante durante todas as cenas diurnas. Já Woody Allen, como diretor, é muitíssimo generoso com seus expectadores, criando belos planos-seqüência e deixando os diálogos decorrerem com fluência e poucas intervenções – o que implica em uma maior naturalidade nas atuações, algo típico das obras do cineasta.

Mesmo que raramente seja colocado no primeiro panteão de obras-primas de Woody Allen, Um Misterioso Assassinato em Manhattan é uma das fitas mais divertidas e engraçadas de sua filmografia. Apostando em uma área até então inédita em suas experiências cinematográficas, o suspense clássico (claro, utilizado com fins cômicos, mas não deixa de ser representante do estilo), o "bom velhinho" nos brinda com um despretensioso filme que, como maior herança, deixa a certeza de que pode sim existir vida inteligente no cinema exclusivamente voltado para o entretenimento – algo que, com base no material que nos fora disponibilizado nesses últimos anos, parecia ser um fato praticamente impossível de ser comprovado. Aliás, insisto em dizer que, mais do que um grande exemplo do termo, Woody Allen deveria ter seu nome inserido logo ao lado da palavra “diversão” no dicionário. Acredito que seja uma perfeita síntese para a expressão.

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