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Críticas

Cineplayers

Azul opaco.

5,5
O texto pode conter spoilers sobre a trama

Gosto de pensar os filmes como organismos. Todos eles, mas sobretudo alguns. Organismos que ora se desenvolvem num crescendo, ganhando em adensamento (imagético? narrativo?), ora se perdem num decréscimo do sopro de vida que os havia feito inflar. Mas que também podem ser esquizofrênicos, se assim os manejam; sutis ou autodestrutivos, sôfregos de disritmia. Está quase tudo, então, no tempo? Os primeiros teóricos se maravilham não com o bebê filmado pelos irmãos Lumière, mas com o vento que anima as folhas atrás da idílica cena familiar. O mundo que se põe em movimento, que se anima, como produto de suas próprias forças. Imagem em movimento. Só que uma ilusão de força motriz. Nada pode ser capturado do jeito como aconteceu. Se me instalo para filmar uma coisa, ela já deixou de ser coisa, ou antes foi submetida ao tempo da câmera. O tempo do cinema é abstrato, construído. É nessa textura temporal que as coisas são-sendo. Do primeiro ao penúltimo segundo de projeção: o filme só É quando se encerra para si mesmo, no instante que antecede a escuridão. Se não o penso assim, tampouco posso pensar Moonlight: Sob a Luz do Luar (Moonlight, 2016). Todos filmes, aliás, mas sobretudo ele.

Sua trajetória narrativa se divide por tripartição clássica – infância, adolescência, idade adulta –, mas também sobre a periculosidade de uma outra: Chiron é negro, gay e pobre. Pode ser centenas de outras coisas, e de fato o é, mas se constrói primordialmente assim. Ainda infante, impõem-lhe uma sexualidade que ele não pode compreender, apercebe-se de um mundo de tráfico prematuramente, num ricochetear de traição: a droga que rouba a sanidade e o carinho que sua mãe podia oferecer é vendida pelo único amigo que acredita ter feito, homem décadas mais velho que ele e supostamente mais experiente. Já adolescente, o horror da sexualidade que não pode explorar se intensifica. Sob a luz do luar, o corpo inclina-se para receber o primeiro contato sexual. As mãos se agarram a areia para controlar o frêmito de prazer. Mas a areia escorrega-lhe pelos dedos: seu único momento de singeleza apaixonada é sufocado pela agressividade destrutiva das gangues de escola. Subproduto dos guetos americanos? Falaremos disso em breve. O resumo de sua vida antes de se tornar adulto, já sintetizado pela duração da obra, tem algumas implicações.

Corro o risco de tomar uma posição possivelmente particular demais. Porque a publicidade o vende como uma problemática identitária (não só uma, mas a melhor do ano) espetacular, precisarei discordar. Ora, todo filme, ao tratar de sujeitos, e sobretudo de um que comumente o protagoniza, não traz a possibilidade de um questionamento de identidades? A não ser que existam sozinhos, e ainda assim é duvidoso, personagens não estão sempre em relação? O mundo não os toca de forma alguma? A crítica jornalística me parece fácil demais. Se a sexualidade, as drogas, a prostituição e a criminalidade propulsionam tal moldura identitária, é mais provável que Moonlight se instale na beira de um abismo. De um lado, a história que se conta de maneira quase sádica: qualquer clarão ''vaga-lumesco'' de felicidade é castrado, e acredita-se que intencionalmente, por uma constelação de misérias. Do outro lado, a aproximação quase inelutável da obra que tangencia demais o tecido social e para quem será impossível desvincilhar-se do puro veículo: ''vejam bem, a vida desses americanos é uma penúria''.

Fala-se, então, em apelar aos extremos? Embelezar a miséria para torná-la palatável ou mostrá-la crua demais, assim como se pensa que ela deve ser vista, e a qualquer custo? Faço um contraponto com aquele que me parece ser seu oposto perfeito: Garotas (Bande de Filles, 2014). Garotas negras, pobres, suburbanas de Paris e em descoberta de uma sexualidade. O que Sciamma alcança e que Jenkins sequer consegue arranhar é a ultrapassagem completa das frases de efeito e do filme que quer se tornar belo através de uma fotografia ou uma mensagem. Eu me afeiçoo por Marieme, sua protagonista. Rio de seus confrontos entre gangues no metrô, choro com suas decepções amorosas, torço para que ela cresça, amadureça. Sua condição não me causa desconforto, não me é vexatória. Ao contrário: quero fazer parte de seu mundo. O recorte de sua vida respira, seus tropeços fluem naturalmente. De certo modo, suas delícias e desapontamentos também são os meus. Tornam-se os meus por aqueles instantes. 

Já a arte de Jenkins é uma costura de rasteiras. Assim que abre espaço para a simpatia, derruba-nos novamente. E daí que aquela vida seja um sucedâneo de injustiças? Tudo se dá na maneira de filmar (enquadrar ainda não perdeu seu poder de dar significado), de coser o que se conta. Os gritos da mãe em slow motion, a mistura simbólica do azul do luar com quase toda a direção de arte, os planos centralizados de rostos em discordância com o tempo do que está sendo dito – tudo transparece afetação, a tentativa de fazer sentir. Simulacro sensorial. 

É possível resolver um filme em seus últimos 30 minutos? Colocar um personagem já sofrido diante de um confronto final com a mãe, só para fazê-la regurgitar e atestar a via-crúcis que já vínhamos acompanhando, cansados; afinal, é preciso fechar as pontas, desculpas devem ser ditas. Mas Naomie Harris não é nenhuma Mo'Nique. E quando finalmente nos instauramos dentro do tempo de uma reconciliação (do filme e do personagem, por sinal), quando a tensão entre dois corpos e duas memórias começa a se infiltrar, já não há mais tempo para redenção. É como um bebê que acreditávamos natimorto e que começa a sinalizar batimentos cardíacos, mas só para morrer de novo. O cinema não sobrevive às pressas. O belíssimo azul que emana daquele corpo negro é opaco demais, não permite a passagem da luz. 

Comentários (4)

Felipe Lima | sexta-feira, 20 de Janeiro de 2017 - 13:44

Gostei muito do filme, mas que crítica boa, bicho. Parabéns.

jorge lucas | sexta-feira, 20 de Janeiro de 2017 - 21:07

A primeira coisa que eu pensei quando terminei de ver o filme foi: ué, mas já? Um filme que vinha se mostrando tão ambicioso não pode terminar assim, como se tivessem tido preguiça de desenvolver melhor o seu desfecho. Ele deveria ter uns bons minutos a mais no seu ato final.

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