Saltar para o conteúdo

Críticas

Cineplayers

A primeira obra-prima de Fritz Lang, entrando no movimento do Expressionismo Alemão com um filme obscuro e humano.

8,5

A morte chega num vilarejo perdido no tempo e compra um terreno ao lado do cemitério local, onde constrói um gigantesco muro ao redor dele. Sendo ela a única que conhece a entrada para a área murada, os habitantes da vila deixam de se preocupar com o estrangeiro misterioso e continuam suas vidas, nascendo e morrendo. Até que a morte segue um jovem casal em lua-de-mel, e resolve levar o rapaz para um passeio. Percebendo a longa ausência do marido, a garota vai à sua procura, até chegar ao cemitério, onde vê uma manada de almas adentrando o muro, sendo ele um dos mortos. Desesperada, ela vai buscar conforto na casa de um velho alquimista que lhe oferece ajuda. Lá, ela lê uma passagem na Bíblia que dizia que "o amor é mais forte que a morte", e resolve se suicidar para se encontrar com a morte e pedir a vida do marido de volta.

Fritz Lang sempre foi considerado uma das grandes forças do Expressionismo Alemão, conseguindo destaque dentre nomes como Robert Wiene, Pabst, Murnau e Paul Wegener. Mas, ao contrário de seus compatriotas alemães e austríacos, o cinema de Lang sempre teve algo de diferente, de mais humanista. Expressionista num sentido muito mais intimista que propriamente estético, este se aproximava mais da corrente existencialista, precursora do expressionismo. Feito apenas dois anos após o marco inicial de O Gabinete do Doutor Caligari, a sociedade ainda estava imersa na atmosfera de medo e insegurança gerados pela Primeira Guerra, e todos os 'escapismos' para o suicídio ou para o misticismo, que predominavam na época, são retratados em A Morte Cansada. O próprio problema do ser em si mesmo acaba sendo o foco principal da narrativa. Mas não nos apressemos. Toda a atmosfera do filme remete ao fantástico, a uma visão de mundo que flerta com os contos do folclore germânico, começando com a própria presença da Morte e de um muro sem fim (numa aproximação kafkaniana da realidade), um alquimista e até a própria cidade, cujo caráter atemporal nos leva então às três estórias paralelas do filme.

Se o amor da jovem é, de fato, capaz de derrotar a morte, esta dá à garota três chances dela prová-lo e, assim, salvar a vida do marido. Numa sala cheia de velas (o escritório da morte), onde cada vela é uma vida, a garota é apresentada a três delas, e pelo menos uma tem de ser salva. Somos transportados então a três realidades alternativas à lá Intolerância, onde o casal é apresentado a um problema, e dele tem de sair vivo. A primeira estória é passada em alguma região islâmica, onde a garota é uma muçulmana e o rapaz um francês. Ele entra escondido numa mesquita para encontrar-se com a amada, mas é descoberto e sentenciado à morte. Ela o ajuda a fugir, mas os homens da guarda não tardam em achá-lo e matá-lo. Na segunda vela, somos transportados para Veneza, onde os dois são um jovem casal de namorados, mas o rapaz é jurado de morte por um nobre de alto escalão. A garota planeja matar o nobre e, para isso, manda-lhe uma carta pedindo sua presença fantasiada na noite de Carnaval, onde o chamaria para um amigável duelo de esgrima, usando a oportunidade para que um de seus servos esfaqueie o nobre pelas costas. Este descobre o plano, e envia a carta ao amante da jovem, que vai fantasiado e acaba apunhalado por engano. Na última estória, vamos para a China mística, onde os dois são um casal que mora nas montanhas com um velho mágico. Este é chamado pelo novo Imperador para festejar sua ascenção com truques de mágica, e os três vão até o local como combinado. Chegando lá, o imperador toma gosto por Tiao Tseng (a garota) e resolve levá-la como presente, enquanto aprisiona Liang (o rapaz), que fica a esperar por sua morte. Como a garota refuta os desejos do Imperador, este manda o velho mágico para convencer Tiao Tseng a ceder. Ela recusa, e rouba o cetro mágico do velho, usando-o para escapar com o marido. O Imperador manda sua guarda atrás deles, mas são todos derrotados. Vai então seu arqueiro particular, que encontra os dois disfarçados, e mata o rapaz.

Morte 3, amantes 0.

No final das contas, o amor dos dois não foi suficiente. A morte estava sempre presente, fosse disfarçada de coveiro na primeira vela, de servo na segunda ou de arqueiro na terceira. Mas ela não assiste a tudo impassiva. À medida em que os dois se aproximam, ela se torna mais ousada. Na primeira, os dois são meros amantes, a própria fluidez da estória dá cabo deles; na segunda eles já eram noivos, e a morte interfere até certo ponto no desandar da coisa, apesar de apenas cumprir ordens da jovem; já na terceira eles eram casados, e a morte teve de ir pessoalmente caçá-los na floresta. Mesmo a garota tendo usado o cetro para transformar-se em estátua e o marido em tigre, a morte vê por dentro do disfarce deles, provando que dela ninguém escapa.

Com uma atuação séria e assustadora, mas completamente fora dos padrões, Bernhard Goetzke transforma a Morte no melhor personagem do longa. Ela, em momento algum, passa o ar de um ser malígno, um inimigo. Pelo contrário, ela tenta ao máximo ajudar a garota a reconquistar o amado, mesmo que nas três estórias ela intervenha contra este acontecimento (uma contradição da qual ela certamente está ciente). A Morte só cumpre ordens, e ela própria diz estar cansada desse trabalho, tendo que separar pessoas e famílias a mando do divino, o que também pode ser visto em seu olhar, sempre tranquilo, mas que parece se perder no nada, o que prova a perfeita escolha de Goetzke pro papel, tornando-se uma referência absoluta da Morte no cinema, infinitamente superior à morte de Bengt Ekerot em O Sétimo Selo. Aliás, Lang sempre escala muito bem seus papéis, e esta morte está entre suas melhores escalações de atores, junto com Peter Lorre em M - O Vampiro de Dusseldorf, e o eterno Dr. Mabuse (inclusive, Goetzke é o inspetor do primeiro filme deste). Mesmo ofuscada, Lil Dagover tem uma boa atuação como a jovem, e várias chances de mostrar isso, ao encarnar quatro personagens diferentes (ao contrário do pouco tempo de tela que teve em Gabinete do Dr. Caligari). Sentimos toda sua angústia ao ver o marido morto, e todo o seu esforço cego e em vão para trazê-lo de volta (por si só, uma situação limite). Quando a Morte lhe dá uma última chance de trazê-lo de volta, oferecendo uma outra vida em troca, ela sai desesperada pela cidade à procura de alguém disposto a morrer, mas não encontra ninguém. Ela chega até a oferecer um bebê que achou num prédio em chamas, mas não foi capaz de dá-lo em troca do marido. Seu amor não é tão forte a ponto de sacrificar um recém-nascido, mas é forte o bastante a ponto de renunciar à própria vida (a válvula de escape do suicídio).

Ao contrário do longa de Griffith, este filme teve um baixíssimo orçamento, e ainda assim conseguiu criar visuais fantásticos (para saber de que Lang é capaz com muito dinheiro, vide Metrópolis). A Veneza do filme não tem muita graça, mas tanto o país islâmico quanto o vilarejo são retratados fielmente, e em grande escala. Já a China, por se tratar de uma cultura tão distante e, até certo ponto desconhecida para a época, é mostrada de uma maneira completamente fantasiosa e idealizada (lembrando em muito o curta Le Thaumaturge Chinois, do Méliès), com seus exoteirismos, guerreiros de espadas gigantes e arquitetura arrojada. Os efeitos também são de primeira linha, desde os fantasmas subindo a escadaria sem fim do muro até as viagens em tapete voador na China (mas esta perde para a viagem em Fausto que, apesar de não ter efeitos tão limpos, é mais inventiva). Talvez o único aspecto ruim do filme seja sua super-exposição de letreiros, provando que este filme (e a obra do Lang em geral) é bem mais voltado para o cinema sonoro, ao contrário do que ocorre com Murnau, que utiliza-se de pouquíssimos letreiros (ou, no caso de A Última Gargalhada, nenhum), o que faz com que o filme flua bem mais. Este filme na época não fez sucesso, mas depois de um tempo foi relançado e virou um clássico cultuado que, entre outras coisas, inspirou Buñuel a querer ser diretor de cinema, algo que, por si só, já merece ser venerado (este inclusive homenageia o filme em O Cão Andaluz). Mas, mais que impulsionar o mestre surrealista, este filme foi a porta de entrada de Fritz Lang no movimento expressionista, assim como sua primeira obra-prima.

Comentários (0)

Faça login para comentar.