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Mosquito

(Mosquito, 2020)
8,1
Média
4 votos
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Críticas

Cineplayers

Zumbido Colonial

8,0

Em seu segundo longa metragem, João Nuno Pinto desenvolve um destemido protagonista. Respira coragem, ao mesmo tempo que é dono de pulmão ainda inocente, capaz de clamar, no auge de seus 17 anos, aos sete ventos, que compõe o território moçambicano: “Eu trago a guerra no pensamento e a pátria no coração”.

O filme inicia com a chegada do barco que leva Zacarias (João Nunes Monteiro) ao país africano, num plano de abertura que podia facilmente compor Dunkirk ( 2017). A força inicial aciona no espectador os códigos clássicos do gênero: campo de batalha, explosões e tiros para todos os lados. A guerra como experiência audiovisual parece a tônica que vai comandar o filme. Ledo engano. Mosquito (2020) vai além. O primeiro sinal é já na mesma sequência: a tropa chega e é carregada nos ombros (literalmente) por homens negros descamisados. Quando já vimos soldados que não caminham?

A narrativa expande-se em linhas descompassadas. Num desses caminhos, somos jogados na proa de um barco esfumaçado a caminho da guerra – ou dentro do Auto da Barca do Inferno de Gil Vicente –, onde homens que parecem inspirados pelas lutas clandestinas de Clube da Luta (1999) desfiguram-se por mera diversão e prazer ébrio. Liderados por um sargento bonachão, instrumentalizado com filosofias de guerra que parecem haver sido construídas em uma Tasca em qualquer esquina do Bairro Alto. O protagonista nunca se envolve diretamente com os pensamentos do superior e tampouco com o “Clube da Guerra”. Fuma seu cigarro, observa – assustado e atônito – enquanto pensa em voz-off na sua vocação heroica, postura magistralmente registrada com a mudança de perspectiva do foco pela direção de fotografia do Adolpho Veloso.

A introdução de guerra ganha ares de road movie. Zacarias perde-se do seu pelotão original. Precisa das pernas para encontrar o rumo da batalha que o levou a deslocar-se até outro continente. Passa a percorrer o território moçambicano enxergando-se sempre superior. Tem na sua honra e mote patriótico um fim maior que o de todos. Apesar do filme estar situado num tempo histórico marcado (1917), o realizador não quer construir uma linha do tempo, um relato puramente histórico – tanto que se utiliza de uma linguagem narrativa moderna. A não linearidade amplia a contradição viva do jovem soldado: é “puro” como herói clássico da epopeia de Camões, mas problemático como a classe média lisboeta que enxerga na colonização um favor.

A paisagem africana, filmada primeiro como mera cenografia, com o passar do tempo ganha força narrativa, efeito similar ao utilizado por Lucrecia Martel em Zama (2017). A natureza mostra-se maior que o homem. Zacarias ignora os sinais, insiste no seu incerto objetivo, mesmo que as condições do caminho pareçam adversas e observe combatentes desertores pela estrada. Soldado, patente reconhecida por ser a inferior em qualquer armada, na África tem ainda o negro como subalterno, para acompanhá-lo em sua peregrinação em busca de seu pelotão e dos louros de uma vitória fantasiada.

O título do filme mistura-se com o domínio do espaço sobre o homem. Zacarias perde-se completamente, em chaga, febre e desespero pelo chão. Desperta sozinho. A guerra agora não é mais com um inimigo físico, mas com sua noção moral colonial. Resgatado por uma tribo de mulheres que veem nele menos do que num animal selvagem, o seu grito em português é como o silêncio do eco de um surdo.

Essa jornada de auto-conhecimento na África, recentemente abordada pelos xarás brasileiros Fellipe Barbosa em Gabriel e a Montanha (2017) e Felipe Bragança com Um Animal Amarelo (2020), em Mosquito (2020), por mais hiperdramatizadas que pareçam ser algumas cenas ritualísticas, com ajuda de intensa pesquisa etnográfica, pretende desconstruir uma idealização histórica colonial para construir um sentido de crescimento do personagem, principalmente ao espectador.

A obra de Nuno Pinto não é sobre o destino do herói. A sabedoria de usar como ponto de partida o sistema clássico grego, também fonte da fundação da Literatura portuguesa, e confrontá-lo com a estrutura narrativa da cultura Macua mostra-se tanto na narratividade da obra como no caminhar pela terra de Zacarias. O confronto estético e filosófico aparentemente chocante das duas culturas existe pela simples picada de um mosquito, gatilho que faltava ao protagonista para experimentar uma jornada interminável e necessária não apenas ao jovem soldado, mas a todos que nasceram, por mera sorte, dentro dos privilégios da Colonização.

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