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Mossane

(Mossane, 1996)
8,5
Média
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Sua nota

Críticas

Cineplayers

A tradição dos rios e a rebeldia dos fluxos

10,0

Safi Faye é eximia observadora de seu entorno, primeiro o de suas memórias, contornando-as em espaço argumentativo; segundo, de sua própria formação intelectual de base nas ciências sociais europeias – especialmente o trabalho dos intelectuais africanistas – que foi lhe fundamental como ela mesmo afirma[1] para entender melhor seu próprio continente. Este poder de observação crítico lhe permite, segundo suas próprias palavras[2], percorrer um caminho que lhe desse ferramentas para ultrapassar o empecilho do real, sem necessariamente desvincular-se deste. Mossane (Mossane, 1996) é seu último filme, e único longa-metragem de ficção, depois de uma larga carreira vinculada ao cinema documental.

A protagonista deste nasce como imagem fílmica numa linda sequência de um pôr do sol dentro do rio de sua terra natal. O seu banho obscurecido em contraste ao brilho das águas forma ali, nos primeiros segundos, a síntese de si e consequentemente da obra por completo. Corpo e sombra: reflexos um do outro. Em seu íntimo ato de encontro com a natureza, a jovem não está sozinha. Homens na beira do rio mostram-se desesperados com seus movimentos; a voz de Yande Codou Sene canta em sererê que a pura e simples existência de Mossane, uma força da natureza, pode deixar o seu entorno completamente perturbado; e por fim, nós, os espectadores, avançamos nosso olhar sem nenhum pudor sobre a sua persona.

Uma mulher que quer ter poder de escolha é razão para as águas tremularem. A corrida da personagem contra o rio representa metaforicamente o seu desejo de libertar-se das tradições que lhe limitam os sonhos. O seu corpo torna-se inimigo da fluidez das tradições. Mossane será maldição em seu povo. Ainda que carregue o peso de reconstruir a história, ali o seu destino já era traçado.

Apesar desse jogo inicial entre pureza e volúpia da protagonista (antes de destrinchar este aspecto), o coletivismo da aldeia Mbissel toma conta das lentes de Jürgen Jürges. O filme centra-se em ambientar o espectador na realidade aldeana – numa perspectiva bem etnográfica – conseguimos dimensionar visualmente o cotidiano, o pensamento vigente, e especialmente algumas de suas tradições, tudo pincelado com uma paleta de cores impecável dominada por um amarelo que nos abre portas para perceber as razões por trás das lideranças soberanas da aldeia e das escolhas antagônicas da personagem principal.

As vestes mais antropológicas começam a cair quando finalmente Mossane revela à sua mãe seus pensamentos. A jovem quer quebrar o paradigma tradicional. Não está interessada em se casar por conveniência, e sim com o homem que ela deseja. A voz ativa de uma mulher sobre o seu corpo entorta as estruturas tradicionais daquele espaço dominado pelo patriarcado. Os planos fogem do coletivo, as sequências que priorizavam as celebrações grupais, passam a focar nos ritos mais íntimos, como por exemplo, a magistral cena que a mãe da protagonista vai buscar seu futuro nos búzios. O drama despe a zona de conforto documental de Faye, e é nesta nudez narrativa que a sua mão tão rigorosa, deixa-se tomar pela juventude de Mossane, os quadros que parecem pincelar sentimentos, de uma até então pura e de inocente adolescência, amadurecem uma serpente disposta a nadar contra o fluxo da correnteza.

Segundo a própria Faye[3], Jürges que se notabilizou entre outras coisas, por filmar a rudeza da cidade engolindo os personagens fassbindernianos – ou vice-versa – vislumbrou-se com as imagens de Fad´jal (Fad´jal, 1979), aproxima-se da cineasta, e é peça fundamental da construção imagética de Mossane, cujo entorno rural é central para as motivações que circulam a psique de todos os personagens da obra. O já consagrado diretor de fotografia afasta-se tal qual sua condutora, de sua zona de conforto, e debruça-se sobre os embates filosóficos mais íntimos do interior do Senegal. Coincidência ou não, o olhar de Faye sobre a energia das atitudes de sua protagonista ao tentar contornar o seu destino desenha-se nas lentes do alemão de uma forma incrivelmente similar ao rumo final dos personagens de Fassbinder.

Enquanto os cabelos da jovem seguem perfeitamente delineados, como a célebre Diouana de Ousmane Sembené em A Negra de... (La noire de..., 1966), a rebeldia que vive dentro de si sai à vista chacoalhando as convicções de seus conterrâneos; o vestido, por outro lado, que parecia ter sido desenhado à sua medida, vai se deixando levar por outras preocupações; o silêncio e aparente apatia transformam-se em constante protesto.

Muito do que se há escrito sobre Faye enfoca-se no paradigma historiográfico de seu feito, já que se trata da primeira mulher da África Negra a dirigir um longa-metragem distribuído comercialmente, o célebre Carta Camponesa (Kaddu Beykat, 1975). Entretanto, o seu trabalho não se trata de uma novidade “apenas” neste aspecto, além de sua fundamental contribuição documental e etnográfica, o choque estético-narrativo materializado no corpo de Mossane em seu primeiro e único trabalho ficcional é o que definitivamente a eleva ao status que possui na História do Cinema. Apesar disto, a sua obra circulou – e ainda circula – muito menos do que deveria, especialmente no Senegal, muitas vezes se vê restrita a pequenos ciclos de cinema africano, ou de intelectuais acadêmicos. Infelizmente essa aparentemente é uma das realidades inabaláveis do cinema africano e de seus artistas, mas que deve ser constantemente desafiada, tal qual Mossane fizera.

Generosa, Faye diz que deve o seu filme à sua experiência com sua filha, aos aldeãos, aos africanistas e ao diretor de fotografia, entretanto, o trabalho da cineasta é ímpar pela sagacidade de parecer não estar, mesmo sempre estando. Construiu uma bagagem empírica e teórica, que lhe concede a sabedoria de observar o delta do rio Senegal, seus movimentos, afluentes e fronteiras, mas essencialmente saber onde e como tocar para influenciar e desviar os rumos aparentemente intransigentes de sua cultura, e abrindo-lhe um afluente capaz de alterar eternamente o fluxo vigente daquele rio outrora intocável.

Referências

[1] AfricaSaga. Safi Faye Mossane - Cinema Lesson in French. YouTube, 04 de setembro de 2022. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=8stflTXfe4c. Acesso em: 19 de janeiro de 2025.
[2] Ibidem.
[3] Ibidem.

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