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Críticas

Cineplayers

Apesar de bela, visão do diretor Mike Leigh de um dos mais admirados pintores mundiais é um tanto frustrante.

7,0

Quando se trata de um pintor tão conhecido e tão admirado como Joseph Mallord William Turner, cada fã tem sua ideia do que foi o artista, de forma que um filme-biografia pode causar frustação em parte do público. Isso é normal e esperado. Mas, em se tratando de Mike Leigh e seu Mr. Turner, a impressão que fica é a de que o filme escorregou pelas mãos do diretor por dois motivos: a falta de recursos, que o levou a fazer vários cortes no plano original, e seu método de filmar, baseado em improvisações com os atores, que praticamente elimina da tela qualquer possibilidade de climax da narrativa. Junte-se a isso o estilo ascético do diretor, quase um Robert Bresson de tão áspero ao filmar, e temos um filme digamos insatisfatório para quem, como eu, enfrentou fila no Museum of Fine Arts de Boston para ver sua obra-prima, Navio Negreiro, no original Slave Ship (Slavers Throwing Overboard the Dead and Dying, Typhoon Coming On).

Turner foi um prodígio desde muito novo (foi aceito na Royal Academy aos 15 anos, e com bolsa), sempre teve dinheiro e patrocinadores, além de muitos compradores interessados em seus quadros, de forma que viajou bastante, conheceu os maiores pintores da época, visitou todos os museus importantes da Europa e estudou cuidadosamente os clássicos. Só assim foi capaz de fazer o que fez, saindo de paisagens e quadros históricos de cunho mais “clássico” do início, tornando-se cada vez mais abstrato com o passar dos anos, a ponto de ser chamado o pai dos Impressionistas. Vemos pouco disso no filme (a viagem a Veneza estava no roteiro original, mas foi cortada, assim como o encontro com Delacroix em Paris): o Turner de Leigh não é um gentleman, mas um bizarro e espalhafatoso “gênio”.

Turner teve um mecenas, o deputado e proprietário de terras Walter Fawkes que, segundo o crítico de arte John Ruskin, foi o responsável por incutir em Turner as ideias anti-abolicionistas que o levariam a pintar Navio Negreiro. Fawkes não está no filme de Leigh. Quem fala do assunto a Turner no filme é aquela que seria sua companheira nos últimos anos de vida, Sarah Booth, quando ainda era casada. Turner teve uma vida miserável, seu pai barbeiro era barbeiro e a mãe, louca, foi internada num asilo. Quando primeiro começa a se distanciar das paisagens idílicas do Rio Tâmisa do início da carreira, Turner se entrega aos horrores da Inglaterra pré-Revolução Industrial, da guerra contra Napoleão, da fome e da miséria. Apenas algumas alusões no filme de Leigh, que preferiu ficar nos salamaleques da corte da rainha Vitória (“Ugh, a dirty yellow mess!” [Huh, que suja bagunça amarelada”]), nos “escândalos” que causaram suas novas pinturas e nas afetações do crítico John Ruskin, de onde saiu a maior parte das críticas ao filme.

No mais, Turner pintava com os dedos; deixava as unhas grandes para dar contorno à tinta, suas mãos eram conhecidas por serem encardidas. Leigh mostra pouco a lambança; até encena uma cuspida, mas quando o pintor está assustando a nobreza. Turner pintava miniaturas, quase microscópicas, usando lupas por vezes, com os olhos grudados na tela. Como sua produção foi grande (mais de 400 quadros) e as telas eram enormes, Turner deveria ser bem mais obessivo do que é mostrado. Como nunca se casou, Leigh o retratou com problemas sexuais. Tem uma viúva como amante, com a qual teve duas filhas, as quais nunca se importou, segundo o filme. Da amante, fez vários desenhos eróticos, mas nenhum deles dá o ar da graça no filme de Leigh. Pintou a óleo uma prostituta, mas quando a cidadã finalmente começa a tirar a roupa, o diretor corta a cena.

Mas há que se entender as escolhas estéticas de Mr. Leigh ao retratar Turner: o pintor era conhecido pela maneira anti-sentimental com que pintava as maiores tragédias. Para um romântico, um feito inigualável. Quando pintou a derrota de Napoleão, o quadro deveria ter sido de um patriotismo exaltado, pois a Inglaterra derrotara o inimigo francês, mas não se vê isso em The Field of Warteloo (1818) – inclusive deram um sumiço na tela, que só voltou a ser exibida muitos anos depois. Ou seja, o ascetismo do diretor faz sentido, faz parte do universo do artista retratado.

Leigh também transpôs para o filme a mesma compaixão que Turner tinha dos desvalidos. Empregadas e gente humilde sempre interagem com a personagem. Como Leigh é excelente diretor de atores, algumas cenas são bastante interessantes. Na melhor delas, Turner discute a natureza das cores com a cientista Mary Sommerville (a grande Leslie Manville, parceira habitual de Leigh). Turner usou tintas e tons que esmaeciam rápido (e foi criticado por isso, Ruskin, é claro). Dizia não se importar com a posteridade. Mary faz uma experiência em que concluía o poder de anular o magnetismo do bonina. Ela mesmo descobriu ser falsa sua premissa, mas pelo menos uma mulher naquela época podia estudar e ter liberdade de discutir suas ideias com os homens.

O filme nos seus melhores momentos remete a que talvez seja o auge de Leigh, Topsy-Turvy - O Espetáculo (Topsy Turvy, 1999), pois havia um mau humor engraçadíssimo na personagem principal. Infelizmente, minha visão de Turner é um homem bem mais sofisticado do que o festival de grunhidos de Timothy Spall – outros também pensam igual. Há um certo humor no filme, bem inglês, talvez inglês demais, em especial quando Turner desanca seu rival John Constable. Leigh não perderia a chance de criticar a aristocracia inglesa pelo seu famoso reacionarismo e manda indiretas por meio do elenco, mas, por mais espirituosas que sejam, são o que são: piadas de salão. Em suma, Leigh transportou Turner para o universo de Charles Dickens, mas o carisma e o senso narrativo ficaram de fora. Pelo menos recriou a cena que inspirou Turner numa de suas obras-primas, The Fighting Temeraire (1839): nesses bons momentos, fica-se o gosto do grande filme que poderia ter sido e que não foi.

Comentários (1)

Lucas Souza | segunda-feira, 05 de Janeiro de 2015 - 20:58

Dessa vez concordo com Demetrius plenamente!

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