Saltar para o conteúdo

Críticas

Cineplayers

Desconstruindo Shakespeare.

8,0

Em um breve período de férias após as filmagens de The Avengers Os Vingadores (The Avengers, 2012), Joss Whedon reuniu amigos e família em sua bela casa em Santa Monica para aliviar o estresse da desgastante maratona e poder retornar à pós-produção do blockbuster. O passatempo: adaptar uma obra de William Shakespeare. Nada de figurino, maquiagem ou design de produção para remontar à época referente à peça em questão; apenas o texto seria mantido, um desafio tremendo diante de sua ambição de levar o resultado daquelas poucas e descontraídas semanas no subúrbio norte-americano para a telona. Pois, o que teria tudo para ser uma despretensiosa adaptação cinematográfica, diante de tamanha limitação de tempo, espaço e orçamento, Whedon transforma na releitura mais ousada e inventiva para o clássico Muito Barulho Por Nada (Much Ado About Nothing, 2012).

Nesse novo projeto, os fãs do virtuoso cineasta (que não são poucos) irão reconhecer uma das principais características daquele que perverteu o estereótipo da loirinha frágil, vítima indefesa de todo filme de terror, e elevou Sarah Michelle Gellar à condição de corajosa algoz de criaturas sobrenaturais em Buffy – A Caça-Vampiros (Buffy, 1997–2003): a subversão, característica presente tanto no tratamento de convenções sociais (a obra tinha uma proposta feminista), como em seu exercício de linguagem, ao ponto de  experimentar um episódio mudo, outro sem trilha sonora e um aclamado musical em uma série de TV de terror/fantasia (mídia e gênero que fariam 9 em cada 10 realizadores recorrer apenas a ganchos comerciais, não experimentalismos). É essa ousadia em forma e conteúdo que caracteriza a nova versão da comédia, desenvolvida com extrema criatividade, ironia e coesão durante toda a projeção.

A proposta, porém, gera certo enfado nos minutos iniciais, devido à manutenção da linguagem rebuscada e da entonação teatral do texto original. Outros elementos são mais facilmente adaptados, sendo os costumes da aristocracia inglesa substituídos por equivalentes contemporâneos da alta classe norte-americana, com personagens em ternos italianos sob medida, o presidencial Lincoln como veículo e o som aprazível do Jazz a emular a música clássica. Mas a ideia é mesmo gerar estranhamento, e a opção por um preto-e-branco todo desenvolvido dentro da escala de cinza, que a princípio surge como falta de apuro e grande equívoco, se configura como uma brilhante extensão do conceito proposto por Whedon: em um universo em que o novo e o velho coexistem, nada mais coerente que rodar o filme num p&b sem contraste de iPhone – e que denota uma falsidade em reproduzir o passado que encontra paralelo com a adoção de uma eloquente encenação em inglês britânico de 1600 em plena América do século XXI.

Pelo estabelecimento deste cenário, Joss Whedon suscita uma reflexão das mais provocativas: a obra shakesperiana se mantém atual, como prega o senso comum, ou estaria defasada? A provocação se intensifica pelo modo "inocente" com que se constroi a história de amor de Claudio (Fran Kranz) e Hero (Jillian Morgese), e depois ganha forte apelo satírico quando o casal se junta a Dom Pedro (Reed Diamond) e Leonato (Clark Gregg) no plano besta de fazer os desafetos Benedick e Beatrice (desenvolvidos como divertidíssimas caricaturas por Alex Denisof e Amy Acker) se apaixonarem. O antagonista Dom João (Sean Maher) é construído de forma propositalmente maniqueísta, e sua escusa relação com Conrad (escrachada em uma cena de masturbação supostamente [e deliberadamente nada] sutil) torna-se uma divertida confusão de gênero ao escalar a atriz Riki Lindhome como intérprete do comparsa – e é aqui que se nota o ponto alto da subversão do diretor e roteirista, que, num cínico pacto de não-agressão ao conservadorismo do público norte-americano, escala um homem e uma mulher para interpretar o casal gay.

Excelente diretor de elenco, o cineasta nova-iorquino faz jus à fama de Much Ado About Nothing ser um dos textos mais hilariantes da consagrada obra do bardo inglês em cada cena envolvendo o condestável Dogberry (Nathan Fillion) e o funcionário Verges (Tom Lenk), num humor pastelão que ainda constitui um julgamento atemporal à inteligência e sanidade dos órgãos militares. Isso também evidencia que a deliciosa paródia não tem a intenção de se posicionar contra uma tradição ou um tempo em específico, mas o de ironizar tudo quanto possível, a exemplo da crítica ao excesso de gadgets na sociedade contemporânea, proporcionalmente inverso a uma falta de privacidade que atrapalha até a secular ação criminosa dos vilões Dom João, Conrade e Borachio (Spencer Treat Clark).

Assim, mais uma vez Joss Whedon transforma uma grande reunião entre amigos (todo o elenco trabalhou ao menos uma vez na carreira com o cineasta) num projeto muito bem-sucedido. A descontração e a dedicação dramatúrgica que o entrosamento entre diretor e atores proporciona, assim como o resultado elegante do audacioso exercício de linguagem cinematográfica adotado, são signos da admiração de longa data do cineasta por William Shakespeare (como a morte de uma personagem da série Angel [idem, 1999-2004], nos moldes de Romeu e Julieta, já comprovara anos atrás). Desse modo, a adaptação da famosa comédia tanto funciona como uma sátira ao próprio Shakespeare, quanto se revela uma inspirada homenagem ao cultuado escritor – complexidade que constitui a ambivalência e a ironia que marca toda a trajetória profissional de Joss Whedon.

Comentários (4)

Victor Narciso | terça-feira, 27 de Agosto de 2013 - 00:56

Parece muito estranho no início, mas depois flui naturalmente. Os monólogos de Benedict são as melhores partes!

Matheus Veiga | terça-feira, 27 de Agosto de 2013 - 12:00

Esse pôster é sensacional!

Patrick Corrêa | quarta-feira, 11 de Dezembro de 2013 - 15:57

Estava muito interessado no filme e perdi no cinema.
Acabei vendo em casa e me incomodou um pouco o rebuscamento dos diálogos, por mais que eu goste de um vocabulário mais elaborado.
Mas é, sim, um bom filme, assim como a crítica está bem escrita.

Faça login para comentar.