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Críticas

Cineplayers

Ousadia, impertinência, juventude, Technicolor e Anna Karina.

10,0

Godard tem muitos motivos para comemorar seus 80 anos e deveria ganhar ao menos duas medalhas: bravura e honra ao mérito. Sua contribuição ao cinema talvez seja o único ponto de consenso a seu respeito, e apesar disto Jean-Luc não deu as experimentações por encerradas, abrindo o laboratório de quando em quando para nos mostrar o que ainda não foi visto. Film Socialisme (idem, 2010) está aí para não deixar dúvidas.

Se o começo de sua trajetória marcou o uso da câmera na mão, garantindo com isso a liberdade de se filmar o fluxo da cidade retirando a mise en scène da prisão dos estúdios, aproximando do cinema um público de transeuntes, flanêurs, garotas e garotos que preferiam a rua em detrimento da casa, seu atual estágio de reflexão apresenta o produto de anos de estudos e leituras sobre a imagem. Por sua vez a comunicação destas reflexões só pode encontrar êxito se construída a partir do mesmo material do qual são feitas as imagens, e não de um profusão de palavras cujo resultado final seria inócuo. Portanto, Godard hoje é um intelectual imagético por excelência, um dos poucos a realizar sua visão de mundo desta forma em plena era da vida transformada em caos midiático.

Dentro deste esquema de estudos, Uma Mulher é Uma Mulher aparece como um exercício de transgressão da linguagem sem com isso acumular o azedume de intelectualismos desnecessários. Apoiando a bravura destas escolhas no carisma e magnetismo de Anna Karina, Godard encontra não apenas uma musa, mas a corporificação de um projeto de atriz capaz de comunicar o que lhe parecia necessário aquela altura: Cor, Marie Claire, Juventude, Liberação sexual.

Angela (Anna Karina), apesar de ser apenas uma mulher, está ali para significar os tormentos e doçuras de se conviver com todas as mulheres de uma talagada só. Confusa, angustiada e cheia de tarefas, ela ainda encontra tempo para ser feminina, se dividir entre dois amores e pensar em ser mãe. O que Godard investiga é que lugar ocupar ou que posturas assumir a partir do momento em que conscientemente você resolve participar do turbilhão de afeto e energia que compõe o mundo de uma mulher.

Suas reverências e concessões ao universo feminino fundam uma escola de heroínas que se sobreporão através dos tempos, entre as quais Catherine (Jeanne Moreau em Jules e Jim - Uma Mulher Para Dois [Jules et Jim, 1962]), Amélie (Audrey Tautou em O Fabuloso Destino de Amélie Poulain [Le Fabuleux destin d'Amélie Poulain, 2001]) e Clementine (Kate Winslet em Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças [Eternal Sunshine of the Spotless Mind, 2004]) são ótimos exemplos.

Ao mesmo tempo em que exaltava o espírito da liberação sexual que marcava aquele começo de década, Godard usou o libelo da feminilidade em contraponto ao feminismo, que ao lutar pela igualdade entre os sexos escolhia masculinizar as mulheres ao invés de liberá-las para serem como quisessem sem precisar assumir os germes daquilo que combatiam. Ou seja, a transgressão não estava apenas na linguagem, mas também no discurso, demonstrando assim seu grau de coerência estética ainda que neste começo de carreira o cineasta precise colocar algumas explicações na boca de sua protagonista, prática que em Film Socialisme ele mesmo combate ao dizer algo como “se você tem alguma coisa para mostrar, vá lá e mostre! Não perca tempo falando.”

Acompanhá-lo nesta aventura de amadurecimento pela teoria e uso da imagem tem sido o grande convite de Godard a todos nós. Trajetória que oscila momentos melancólicos como em Viver a Vida (Vivre Sa Vie, 1962) e alegres como em O Demônio das Onze Horas (Pierrot Le Fou, 1965) ligando todas estas etapas pelos fios condutores da experimentação e da curiosidade, caminhos que o levam ainda hoje a esgarçar as possibilidades até o limite, somente para depois ultrapassá-lo novamente.

O lúdico e a expertise tem alguns de seus melhores encontros sob a alcova de Godard, que brinca enquanto fala sério e vice-versa. E é na leveza com que conduz todos estes elementos, sob as bênçãos do Technicolor, que Uma Mulher é Uma Mulher é um filme cujo efeito é uma bomba de sedução jogada diretamente no seu colo. Ao sair do cinema você não sabe se está apaixonado por Anna Karina ou Godard, ou porque não pelos dois?

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