Saltar para o conteúdo

Mulher-Maravilha 1984

(Wonder Woman 1984, 2020)
5,1
Média
96 votos
?
Sua nota

Críticas

Cineplayers

Olímpica

6,5

ALERTA DE SPOILERS
O texto a seguir discute partes importantes da história do filme.
Leia por sua conta em risco.

A composição do universo cinematográfico da DC Comics teve como principal idealizador Zack Snyder. Amado por alguns e detestado por outros, o fato é que o diretor tinha uma ideia bastante clara para o universo que pretendia construir - que por diversos problemas, nunca se consolidou plenamente. Entre os ideais de Snyder para o universo da DC, estava a concepção de que os super-heróis da editora das lendas são como deuses e, desde a constituição do elenco, esse fator era determinante. A intenção foi buscar por atores e atrizes imponentes, belos, que representassem imageticamente a grandeza desses super-heróis. Entretanto, não estamos falando exatamente de grandes intérpretes.  

Os três personagens que já tiveram filmes-solo no universo concebido por Snyder, Superman, Mulher Maravilha e Aquaman (Shazam é de um segundo momento, são interpretados por Henry Cavill, Gal Gadot e Jason Momoa, respectivamente. Os três valorizam bem a perfeição física dos heróis, embora não sejam intérpretes de primeiro nível. Assim, uma solução para as obras foi engendrar roteiros com pares românticos a dialogar constantemente com os super-heróis. Então, o Superman de Henry Cavill é conduzido pela Lois Lane de Amy Adams. No caso de Gal Gadot como Mulher Maravilha, Chris Pine criou um excelente contraponto como Steve Trevor. Apenas o Aquaman de Momoa não conseguiu um par adequado com Mera, de Amber Heard, formando a dupla mais capenga dos exemplos citados.

Assim, a perda de Chris Pine seria um problema, para Mulher Maravilha 1984 (2020). Já era notório a excelente química com Gal Gadot, além do carinho que os fãs mantinham por Steve Trevor. Dessa forma, um dos primeiros trabalhos dos criadores - a diretora Patty Jenkins e o produtor Geoff Johns - foi estabelecer as bases para o retorno do piloto após a sua morte em Mulher Maravilha (2017). A volta de Trevor se justifica por um pedido de Diana para um artefato de poderes ocultos. O mesmo objeto que vai gerar os dois vilões do filme: Maxwell Lord (Pedro Pascal) e Barbara Minerva/Mulher Leopardo (Kristen Wiig).

Outra articulação importante para Jenkins e Johns foi destacar relações diretas com histórias em quadrinhos recentes da personagem. Por exemplo, na bela e grandiosa sequência inicial em Themyscira, em que a pequena Diana vai participar de um desafio com amazonas mais velhas. Em certo momento, ela trapaceia com a intenção de vencer a prova. Essa ação lembra bastante a história de Mulher Maravilha: A Verdadeira Amazona, de Jill Thompson, que destaca Diana como uma menina mimada que teve de receber uma real lição por seu comportamento. Assim, em Mulher Maravilha 1984, é por conta da trapaça que ela ouve ensinamentos sobre a importância da verdade que vai acompanhá-la pelo resto da narrativa. Da mesma forma, a sequência no Shopping Center, que dá origem à trama de busca pelo poderoso artefato que vai ser determinante para o filme, lembra bastante o arco de Greg Rucka na fase Renascimento da DC Comics, em que a ida de Diana a um centro de compras também é essencial para o desenvolvimento narrativo. Então, as duas sequências de abertura que apresentam Diana no passado e no presente e estabelecem pontos cruciais da narrativa têm paralelos muitos claros com histórias recentes da personagem nos gibis. Assim, o filme alimenta a visão atual sobre a personagem.

Além de lidar com o universo cinematográfico da DC e com histórias em quadrinhos recentes, era necessário analisar o cânone da Mulher Maravilha para desenvolver ideias próprias no segundo longa-metragem solo da personagem. Aqui, a dimensão divina de Diana foi bastante explorada. Dentre os super-heróis da DC Comics, a Mulher Maravilha é a que mais se aproxima de uma posição de divindade. O contato direto com a mitologia grega e os deuses que constituem o Olimpo são fundamentais, por exemplo, para o arco de Brian Azarello na fase conhecida como Novos 52. Assim como a fase pós-Crise nas Infinitas Terras capitaneada por George Perez. Vale destacar que as fases de Azarello e Perez nas histórias em quadrinhos da Mulher Maravilha são dois grandes reinícios da jornada da heroína na DC e dois de seus arcos mais conhecidos e prestigiados.

Mulher Maravilha 1984 valoriza esse legado da personagem para conceber uma Diana distante do mundo dos homens. Tal distância tem uma razão de ser: a morte de Steve Trevor foi um choque enorme para a heroína. Desse modo, seu afastamento do universo que a rodeia está ligado à sensação de não pertencimento. Mesmo que ela viva entre os seres humanos, trabalhe em um museu e tenha atividades triviais como usar o metrô para ir ao trabalho ou jantar em um restaurante, suas ações são sempre solitárias. Esse é, inclusive, o primeiro conflito com a pesquisadora Barbara Minerva, uma moça que não é notada entre os profissionais do próprio museu onde trabalha. Por mais que Diana tenha uma personalidade magnânima e se interesse em ajudar os outros, recusa de primeira um convite de almoço de Barbara, pois não se sente à vontade construindo relações pessoais com quem quer que seja. 

À primeira vista, pode parecer estranho o fato de Diana se ressentir de algo há tanto tempo passado. A morte de Steve Trevor foi há sete décadas. Contudo, o que se manifesta nessa condição de deusa na Terra de Diana é uma percepção diferente do tempo. Para a personagem, não há uma passagem de nascimento / crescimento / amadurecimento / morte. Ao contrário, a sensação da própria morte não existe para ela. Não há a mesma condição temporal que existe para os mortais. Como ocorre com os Deuses do Olimpo, o amadurecimento é o último estágio de sua vida.

Certamente Diana sofre com a morte. O luto pela perda de Steve Trevor é presente, mas não deve ser entendido em relação aos anos em que ela ficou sem Trevor, contudo, a partir da intensidade dessa perda. A grande paixão de Diana morreu. Para quem não envelhece e, supostamente, não irá morrer - claro que os vilões sempre vão procurar uma forma de reverter isso - é arrasador, pois é algo que se repetirá sempre que ela se relacionar com alguém. Não é por acaso que o símbolo de união entre Diana e Steve é um relógio. Sempre a fazer “tic tac''. Muitas vezes, o som preenche o ambiente do apartamento em que o casal fica junto, representando a percepção temporal diferente entre os dois.

A relação de Diana com o tempo também é marcante durante a viagem para o Cairo que faz com Steve Trevor. Eles roubam um avião e têm de escapar de alguma forma. Eis que ela consegue deixar a aeronave invisível para fugir do conflito. Após essa tensão, o casal percebe fogos de artifício e Steve Trevor leva o avião ao show pirotécnico. A efemeridade daquelas explosões que logo se dissipam no céu é como a vida humana funciona para Diana. Por outro lado, ela se encanta. Sabe que aquele será um momento único que ficará refletindo nela muito depois do acontecido. Esse pequeno momento de doce inocência a traz leveza. Assim como para o filme que, mesmo tratando de diversas questões, intenta ser leve e divertido.

No sentido de construção de Diana como uma deusa, a sequência de ação no Cairo é especificamente importante. O uso que Patty Jenkins faz da câmera lenta - recurso que já existia em Mulher Maravilha - ganha novos contornos. É como se ficasse explícito que o tempo corre de forma diferente para a Mulher Maravilha e a câmera lenta fosse uma forma de observar como a heroína capta o mundo. No momento em que ela salva Steve Trevor de uma bala com o seu laço, fica perceptível que a sensação de tensão era dele. Para ela, não há maiores danos. Diana parece ter total controle da situação. Como se naquele momento Trevor não corresse perigo e ela soubesse disso.

A passagem citada também se faz importante porque cria um oposto com a sequência da ‘terra de ninguém’, do filme Mulher Maravilha. Na cena durante a Primeira Guerra Mundial, a personagem passava a encarnar sua versão super-heroína, ali se descobria e se moldava como alguém destinada a enormes proezas. Em Mulher Maravilha 1984, porém Diana começa a ter seus poderes removidos. Ela, aparentemente, está deixando de ser uma deusa. Esse efeito está diretamente ligado ao fato do pedido de Diana pelo retorno de Steve Trevor. O fato de Diana estar se transformando em humana não parece algo ruim para ela. Aliás, seria o jeito de se aproximar de Steve como nunca aconteceu antes, pois iriam viver juntos tendo consciência que o fim da vida dos dois seria inevitável.

Os pedidos de Barbara Minerva e Maxwell Lord também estão ligados à condição de humanidade. Entretanto, se Diana começa a se tornar mais humana, perde as suas especificidades de deusa, com os vilões ocorre de outra forma. Barbara e Maxwell começam a perder sua humanidade. A princípio, são sujeitos imperfeitos como quaisquer outros. Entretanto, Barbara passa a valorizar sua força e a atenção que recebe dos homens em detrimento da pessoa que era. Assim como Maxwell valoriza apenas o seu poderio financeiro e se esquece do próprio filho, a quem ele queria dar orgulho. 

Especialmente Barbara está diretamente ligada à perda da humanidade destacada. Assim que Diana cede ao convite e as duas vão jantar juntas, riem bastante. Diana chega a comentar que não se lembrava de rir tanto quanto naquele encontro. Barbara mostra que mais do que ser um tanto atrapalhada, é gentil, afetuosa, engraçada, espontânea, carismática: características que fazem dela uma mulher de carne e osso. A partir do momento em que se torna cada vez mais forte e chamativa, perde essas características, até que deixa de ser fisicamente humana.

O confronto entre a Mulher Maravilha e a Mulher Leopardo é bastante complexo. As duas são como dois lados de uma mesma moeda. Se a primeira busca intensamente ser mais humana, a segunda deseja se tornar uma figura de força, mesmo que completamente desumanizada. As motivações de Barbara são claras e, de certa forma, compreensíveis, tendo em vista que a moça se tornou muito do que gostaria de ser. Nesse sentido, é importante valorizar o desempenho de Kristen Wiig que, por muitas das vezes, é desvalorizada por ter vindo do programa de humor Saturday Night Live, mas que recorrentemente faz grandes trabalhos. Aqui, ela consegue dar toda a timidez da personagem e valorizar a sua mudança como uma mulher altiva e cheia de si, até a sua última forma como vilã. Cada vez mais, fica óbvio que Wiig é uma grande atriz e seu desempenho é uma prova inconteste.

O choque entre Diana e Barbara também está ligado à forma como são tratadas em uma sociedade machista. A primeira recebe constante atenção e elogios, enquanto a segunda é costumeiramente destratada. Entretanto, nenhuma das duas oferece o que se exige de uma mulher, já que Barbara não exala a sensualidade que se identifica como feminilidade e Diana não cede a qualquer investida masculina, optando por ficar sozinha. As duas demonstram, contudo, que são mulheres com diversas camadas e desejos, ao contrário do que a sociedade esperaria delas. 

Se a relação entre Diana e Barbara ou Mulher Maravilha e Mulher Leopardo é bem articulada, não é possível falar o mesmo de Maxwell Lord. O outro vilão da trama funciona como oposto presente no cânone da Mulher Maravilha: uma heroína que busca a paz e a verdade. Apesar de sua capacidade física, não valoriza a força bruta. Maxwell Lord insere o filme em um contexto de realidade. Assim como Mulher Maravilha lidava com a Primeira Guerra Mundial, Mulher Maravilha 1984 destaca a Guerra Fria e o poderio armamentista de Estados Unidos e União Soviética.

Por conta de Maxwell Lord, os Estados Unidos e a União Soviética vão iniciar o conflito armado que se desenhou por anos no contexto de Guerra Fria. Cabe, obviamente, à Mulher Maravilha evitar que aconteça. O conflito não é satisfatório. Parece estar mais ligado ao propósito de inserir o filme em um contexto histórico do que ressaltar a vilania de Lord. Aliás, ele poderia ser complexo como a Mulher Leopardo, mas não é bem trabalhado. A sua relação com o filho fica em segundo plano e se torna apenas uma artimanha de roteiro para fazer valer a possibilidade de guerra entre as duas potências armamentistas da época. Pedro Pascal se esforça para dar um ar vilanesco cheio de excessos, mas é traído por um roteiro que ora o pensa como um vilão caricato, ora como um vilão encharcado de seriedade. 

Inclusive, Alistar, o filho de Maxwell Lord poderia ser um personagem importante ao abdicar dos seus desejos para poder ter uma relação amorosa com o pai. A visão pueril da criança é valorizada ao longo do filme. Contudo, está preso aos diálogos e cenas de alto grau de teor melodramático do que a uma elaboração constante da aproximação e distanciamento entre pai e filho. Assim, um excelente personagem secundário que funcionaria como uma figura dos valores que a obra deseja transmitir fica apagado.

Além de tudo, o aspecto mais conservador do filme fica explícito no arco de Maxwell Lord. O vilão passa a conceder os desejos das pessoas. Em troca, ele apanha algo delas sem que saibam. Para que o mundo retorne à normalidade, é necessário que todos abdiquem de seus pedidos. Assim, bilhões de pessoas ao redor do globo se desfazem de suas maiores aspirações por um bem maior. A grande questão é que não há um sentimento de real união. No fim das contas, todas as escolhas são individuais e ninguém precisa se aproximar realmente  do outro para reaver o mundo como antes.

Ademais, nesse contexto, Mulher Maravilha não aparenta ser uma super-heroína da paz e da verdade, mas da ordem. Se Maxwell Lord é uma crítica óbvia ao ex-presidente Donald Trump (na data de lançamento original do filme, ele ainda estaria no poder), o filme nega qualquer conflito social em detrimento de uma sociedade pacífica - apesar das desigualdades de classe para as quais parece se cegar.

Unir o universo cinematográfico da DC, os gibis atuais da Mulher Maravilha, reinterpretar o cânone da personagem, a posição da mulher na sociedade, inserir o filme em um contexto histórico crível em uma postura alegre e colorida poderia fazer de Mulher Maravilha 1984 uma colcha de retalhos. Patty Jenkins é inteligente o suficiente para mesclar todos esses elementos em uma narrativa fechada. Fica claro que o filme poderia ser mais interessante, caso fosse mais auto-contido e tivesse um maior foco, ao invés de tentar abarcar o mundo. Por fim, o roteiro dá uma abertura para um terceiro filme que já foi oficializado pela Warner. Resta torcer por uma obra com uma mira mais certeira. Os fãs da personagem agradecem.

Comentários (0)

Faça login para comentar.