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Críticas

Cineplayers

Entre a nostalgia e o fluxo.

6,5
Porque nos seus primeiros minutos Mulheres do Século 20 (20th Century Women, 2016) parte de um entrelaçamento de pontos de vista entre mãe e filho e se subdivide em dois tempos (o passado da narrativa e o presente da mesma), só para depois nos lembrar, durante sua duração completa, de que ainda outras diversas experiências com o tempo farão parte estruturante da narrativa em si, será preciso extrapolar essa variante no que ela diz respeito ao 'intra', ao filme dentro de si mesmo, e tomá-la, também, para além da tessitura da história pela maneira como se conta, uma instância maior. Um Tempo em maiúsculo, da forma como o Cinema constantemente o trata, reutilizando-se de imagens de arquivo para criar híbridos, mergulhando no passado para trazer algo à tona (ou simplesmente nada), ou mesmo ensejando o impossível do tempo que ainda não conhecem, em ficções futuras. Os exemplos são inúmeros. 

Mas também parto, aqui, deve-se admitir, de uma posição particular e que também é atravessada por esse Tempo. Uma posição que tentarei tornar universal: terminado o filme, a sensação de indefinibilidade se instaurou. O desconforto de não saber se havia gostado ou não foi afetado em demasia pelo sobrepeso que a auto-consciência que o filme tem sobre este Tempo acaba por despejar sobre si mesmo. E esse sobrepeso foi ainda abalado pelo que parece ter sido uma infiltração do documental dentro da própria narrativa. A intenção está longe de renegar os híbridos entre ficção e certos aspectos do documentário – ao contrário, a experiência que o Cinema apresenta ao optar por não discernir entre duas barreiras resultou em obras monumentais, sobretudo numa cinematografia brasileira. Mas o que são os letreiros de obras dos anos 70 que se inscrevem na tela, indicando livros específicos e populares da época e que seus protagonistas leem? O que são as dezenas de fotografias em ritmo acelerado que estouram imediatamente após algum comentário sobre algo generalizado, como as stills em preto e branco de ''tribos punk em casas de show'' ou ''homens típicos de um vestuário e biotipo'' da época? Por que sinalizar, e com tal frequência, tais signos específicos do que teriam sido aqueles anos?

Há um perigo eminente sobrevoando o filme inteiro e ameaçando estilhaçá-lo, e que um contraponto com uma outra obra reverente aos anos 70 parece ilustrar bem: qual a relação d'As Virgens Suicidas (The Virgin Suicides, 1999), também, e afinal, mulheres do século 20 recriadas, com aquelas de Mike Nills? Partamos pelas semelhanças: nem as cinco irmãs de Coppola nem as três mulheres de Nills são verdadeiramente mulheres que viveram naqueles anos. Primeiro porque o cinema trabalha com virtualidades; depois, porque há certo grau de intangibilidade ao passado, e que, por mais que os objetos, relatos escritos, fotografias ou rememorações de mulheres que viveram propriamente uma certa época, tentem recriá-lo, ele estará sempre lá. Seu aspecto de ''já-foi'' nunca o escapa. Se se desejar adentrar neste tempo que não existe mais, é porque algo dele se quer extrair, e que se espera que ultrapasse o puro fetiche saudosista ou estético. 

Mas este ainda não parece ser o caso aqui. Decerto, filmes dispõem das ferramentas que quiserem para construir a si mesmos, mas se não estão alertas, atentos à certa esquizofrenia das formas, há chances de que escorreguem num limbo estético. Nada se diz no Cinema: tudo se mostra. Quando Julie (Fanning) fala das experiências sexuais com homens e as fotos (acima mencionadas) irrompem, Nills não me mostra nada além de sua necessidade de dizer que não soube ou não pôde mostrá-la com esses mesmos homens que tão delicadamente quis retratar. Na verdade, até tentou, mas cenas de 2 segundos picotadas em vans, terraços, com corpos em cima uns dos outros ou sorrindo em paqueras não são suficientes. Tampouco o é que seus personagens narrem as individualidades uns dos outros a partir da época em que nasceram. Jamie não é tudo o que é por ter nascido num período de instabilidade política, liberdade sexual e drogas. A reverência ao tempo passado por vezes se denuncia como caricatura superficial, uma estilística que, se surte algum efeito, é o de localizar espectadores diante de uma prática ou signos caros a certo tempo. Ou melhor: ao que sobrou deste tempo, ao que se acha que ele é e à maneira e níveis como nossas individualidades são atravessadas por ele.

Pode-se até falar de uma fetichização do passado. Penso que sim e que não: a irregularidade dessas mulheres do século 20 é a prisão a um estado entre a nostalgia e a fluidez. Nills não me parece nem sentir falta, nem se permitir a intromissão total no ''lá''. E quando todos os seus personagens começam a narrar os próprios futuros, esse estado intermediário fica ainda mais claro: restringem-se a falar sobre quantos filhos tiveram, quantas vezes casaram e quais profissões tomaram para si. Porque são essas questões que atravessam todos os tempos, ainda que reduzam as vidas a uma tríplice indissolúvel: o que deixamos no mundo, o que fazemos dele e com quem nos relacionamos. É a fluidez desses conflitos que importa. Como aquela mãe é, na verdade, todas as mães que se defrontam com as dificuldades de criar filhos, como aquela adolescente é o símbolo de todas aquelas que se descobrem na delicadeza de relações com homens e com as próprias crenças. É esse conflito, são esses gestos, essas trocas de olhares, esses corpos em constante descoberta e produção que importam. Quando aposta nessa mise-en-scène, as mulheres do século passado e deste século nos dão as mãos e a organicidade das histórias se mescla ao prazer de quem as vê. 

Comentários (2)

Felipe Lima | quarta-feira, 22 de Fevereiro de 2017 - 17:31

Acho que ficou faltando um pedaço da crítica no fim. E o pior é que eu tava lendo empolgado, porque o texto tá muito bom haha.

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