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Críticas

Cineplayers

Faltou imaginação ao mundo imaginário de Terry Gilliam.

3,0

Quando o telefone de Terry Gilliam tocou num fim de tarde tranquilo do dia 22 de janeiro de 2008, uma terça-feira, o diretor inglês estava no seu momento mais promissor dos últimos 10, 15 anos. Trabalhava um roteiro seu, com autonomia sobre um orçamento absurdo de trinta milhões de dólares para um filme independente e contando com um dos maiores talentos descobertos do limbo hollywoodiano dos últimos tempos. Depois das más recepções de Os Irmãos Grimm e Contraponto, de ter passado o cão com a produção do quase abandonado The Man Who Killed Don Quixote, Terry Gilliam estava enfim em paz com o mundo quando lhe ligaram para dizer que seu protagonista, que não finalizara nem metade das filmagens, havia morrido.

E este texto começa contando uma história que praticamente todos já conhecem apenas para esclarecer algo que praticamente todos negam ou ignoram: a morte de Heath Ledger nada tem a ver com o fracasso de O Mundo Imaginário do Doutor Parnassus. Quisera tivesse.

Parece sarcasmo dizer que falta imaginação a Dr. Parnassus. Gilliam se utiliza de velhas insígnias da narrativa fantástica sem conseguir agregar identidade à sua própria fábula que, exatamente por se assumir fábula (ou por tentar se assumir, cena após cena, desesperadamente), carrega uma pretensão e uma responsabilidade muito difícil de ser correspondida. Porque há um objetivo - e ao mesmo tempo um sine qua non - muito claro para aquilo que não apenas flerta como morre nos braços do fantástico: encantar. Não há o mais leve sinal, em momento algum, de que o espectador está livre para compartilhar do mesmo êxtase que transborda dos que atravessam o espelho do Dr. Parnassus de volta à realidade.

A fantasia de Gilliam está comprometida com um tom que o coloca em contradição consigo mesmo se observarmos o histerismo bem-humorado de Brazil: O Filme e a inventividade eletrizante que compõe o universo de Os 12 Macacos. Falta sonho ao sonho, beleza ao que era para ser belo e loucura ao que era para ser louco. Dr. Parnassus se leva a sério num nível que põe lado a lado imaginação e realidade em um filme que tenta o tempo todo - e mantém como argumento primário - separar o quanto for possível o imaginário do real, engatando uma sequência de objetivos incompletos que termina enfim por tornar a realidade suja e obscura das ruas de Londres muito mais interessante que o planeta ilimitado da imaginação, o que vai de encontro a tudo que Terry Gilliam propõe em Dr. Parnassus. E isso nada tem a ver com o criticadíssimo CGI de uma década atrás, mesmo que ele também não ajude.

Por outro lado é quase obrigatório, a esta altura, falar das atuações em Dr. Parnassus. Por Ledger e pelas circunstâncias que levaram Depp, Farrell e Law ao projeto. Pra quem não considera o Coringa de Ledger nem metade do que a maioria acha (embora acredite que o Ennis Del Mar de O Segredo de Brokeback Mountain é um dos mais brilhantes desempenhos da última década), criticá-lo em Dr. Parnassus fica parecendo implicância infantil, mas a verdade é que Ledger constrói o personagem menos interessante entre todos que desfilam pelo filme, e isso não em comparação aos outros Tony de Depp, Farrell e Law, mas ao talentoso Andrew Garfield, à beleza dúbia de Lily Cole e ao diabo do cantor Tony Waits, único representante de um último rastro de bom humor que Gilliam há muito deixou para trás, mesmo que seja difícil avaliar algo funcional onde simplesmente nada funciona.

O que há de bom para ser tirado disso tudo é o efeito interessante (mas não necessariamente positivo) que o choque entre quatro atores interpretando o mesmo personagem acaba causando. O Tony de Ledger é um tanto contido, escondido debaixo do cavanhaque, do terno branco e do rabo-de-cavalo (o que não é ruim se pensarmos que a interpretação mais barulhenta dos últimos tempos havia sido do mesmo Ledger, meses antes, também debaixo de uma fantasia).

Talvez por terem pouquíssimo tempo em cena, as demais faces de Tony tendem a um exagero que desmancha o que Ledger havia composto. Mesmo que não seja nada novo. Depp passa a jato pelo filme tirando do armário aquele ar de canalha divertido que o imortalizou como Jack Sparrow, Jude Law congela um sorriso de orelha a orelha como se tivesse viajado ao mundo imaginário do Dr. Parnassus numa nuvem de cocaína, e Farrell, com mais tempo em cena e afetadíssimo por pegar Tony em seu momento derradeiro no filme, acaba por bater uma sentença de morte ao personagem.

Há sempre duas presenças em cena: Tony (um cavanhaque, um terno branco e um rabo-de-cavalo) e o rosto que o interpreta, sempre mais forte, sempre entrando em choque e destroçando o primeiro. Não surpreende o fracasso do filme junto ao público quando, como aditivo, fracassa também o seu único personagem relacionável, peça-chave para conduzir o espectador pelo surrealismo, sempre indigesto e impopular. Ainda que o surrealismo de Gilliam careça de sua matéria-prima terminando indigesto e impopular de uma forma ou de outra.

O Mundo Imaginário do Doutor Parnassus falha como viagem pela imaginação, como fábula, como filme e como último legado de Heath Ledger, seguramente motivo pelo qual será mais conhecido e procurado. Tanto a morte de Ledger não seria problema para Gilliam como poderia ter sido melhor aproveitada em todos os sentidos, por pior que isso possa soar. Não dá pra contabilizar as possibilidades que uma mudança provocada pela morte de um protagonista poderia abrir. E por mais terrível que tenha sido o evento em si, é preciso mencionar isto como algo saudável para um filme que possui como premissa levar o espectador a uma viagem pelo imaginário.

Ao invés de surtar e explorar a total falta de limites que criou para si mesmo em um filme sem - em teoria - compromisso com a realidade, Gilliam se tranca no pragmatismo e na burocracia de filmar um roteiro que tenta de todos os jeitos se consertar quando deveria terminar de se destruir, porque é apenas a partir da ausência de regras que se atravessa para o outro lado do espelho. O cara que dirigiu Em Busca do Cálice Sagrado deveria saber disso.

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