Saltar para o conteúdo

Críticas

Cineplayers

Uma obra-prima de Steven Spielberg. Linda, política, irretocável e, principalmente, corajosa.

9,0

Ao final de Munique, temos a plena sensação de que não assistimos a um filme de Steven Spielberg. Não por sua qualidade absurda, afinal, o diretor já produzira dezenas de obras-primas como Tubarão e A Lista de Schindler, mas porque, desta vez, Spielberg constrói um filme totalmente diferente de suas características e nos entrega uma obra crua, realista, pessimista, absurdamente política, corajosa, com uma história poderosíssima e uma perfeição técnica impressionante. Este é, sem sombra de dúvidas, um dos melhores filmes de sua carreira e o melhor do ano de 2005. Nunca iria imaginar que, ao sair de um filme do diretor, fosse estar realmente mal, pensativo ao extremo, cheio de questionamentos políticos e humanos, mas sem nenhuma resposta clara à vista. Spielberg questiona, não responde. Quer mostrar, não dar lições.

O filme se passa em um momento posterior a um acontecimento histórico: depois que onze israelenses foram brutalmente assassinados nas Olimpíadas de Munique, em 1972, é criado um grupo terrorista conhecido como Mossad, que tem como principal objetivo matar os palestinos responsáveis pelo ataque e vingar a morte de seus "irmãos". Para essa missão, conhecemos cinco personagens, comandados por Avner (Eric Bana), um homem comum, que embarca na missão pelo amor ao seu povo.

O interessante é que, com o passar do longa, o personagem entra em um estudo psicológico profundo, sobre os traumas que essa missão lhe causará, começa a questionar as provas sobre as pessoas que ele está eliminando e há uma interessantíssima evolução com relação a sua pessoa: antes inseguro e desconhecido, depois passa a ser mais conhecido e, porque não, perseguido. No elenco, nomes poucos conhecidos para o público mais casual, como por exemplo Ciarán Hinds (ator Irlandês, que em breve estará em Miami Vice e que esteve recentemente em O Fantasma da Ópera) e Mathieu Kassovitz (francês, mais conhecido por contracenar com Nicole Kidman em A Isca Perfeita). Há ainda nomes mais chamativos, como o mais novo 007, Daniel Craig (que mostra que pode sim ser um grande intérprete para o personagem) e Geoffrey Rush (muitos e muitos filmes famosos ao longo da carreira).

É impressionante o poder de Spielberg de mostrar que isso é um ciclo sem fim, uma pessimista mensagem sobre o conflito que cada vez piora. Um dos mecanismos usados para alcançar isso é pegar uma luta entre os dois povos já em um estágio intermediário. Spielberg não conta o começo e nem espera um final – mas mostra como é que as coisas acontecem entre israelenses e palestinos. É impressionante também o quanto Spielberg não poupou o seu público das barbaridades cometidas pelos personagens. Se fosse algum de seus outros filmes, não veríamos braços pendurados, pessoas nuas sendo assassinadas, tiros sem censuras e demais atrocidades em batalhas do gênero.

Baseado no livro de George Jonas, o roteiro de Tony Kushner e Eric Roth é complexo e cheio de diálogos maravilhosos, que nos farão realmente pensar no tema. Quando assistir ao longa, perceberá que inúmeros detalhes serão inseridos para serem reaproveitados ao longo da história, que os mais despercebidos, por exemplo, nem irão se ligar. Somado à edição, a inteligência técnica deste longa alcança níveis absurdos de perfeição. O que dizer, por exemplo, da montagem paralela entre vítimas e futuros alvos, logo após o primeiro atentado do filme? Fora as inúmeras perguntas sem respostas que ficam em nossa cabeça ao término da sessão, como por exemplo quem diabos era aquela deliciosa assassina holandesa.

Ainda quanto a técnica utilizada no longa, gostei absurdamente da imagem adotada por Spielberg. Envelhecendo-a com precisão, temos a nítida sensação de estarmos realmente assistindo a um filme dos anos 70, sensação reforçada ainda mais pela competente direção de arte, com trajes, penteados, objetos extremamente convincentes (aqui abro um parênteses: muitos filmes recriam bem a época, mas deixam os atores totalmente destacados do período que quer ser recriado; algo que não acontece com Munique, já que todos os atores, sem a menor exceção, parecem realmente serem dos anos 70). A luz é toda estourada, cores descoloridas, excesso de zooms... Tudo para lembrar, esteticamente, da época que está sendo retratada.

É impossível também não comentar o teor político do longa. Tentando ser o máximo imparcial possível, Spielberg apresenta seus personagens não como pobres coitados em busca de justiça; e sim como pobres pessoas que não conseguem enxergar que estão levando a frente uma luta sem fim. E a prova de que Spielberg está ciente disso é que um dos próprios personagens chega a levantar essa questão ao longo da trama, rapidamente repreendido pelos seus colegas, que acreditam realmente estar fazendo algo de bom para o seu povo.

Spielberg não se oculta, tenta mostrar ambos os lados, apesar de estar retratando apenas um deles, e ainda se preocupou profundamente com as reações que esse tipo de escolha poderia causar nos povos envolvidos na vida real. Judeu, Spielberg entrou em contato com o chefe do serviço secreto de Israel e também com os agentes do Mossad da época, para exibir e explicar o suas intenções a eles. O filme encontrou dificuldades em ser aceito por diversos membros do Mossad (como disse, ele mostra que ninguém está certo, mas é óbvio que, os envolvidos, não vão ficar lá a toa, achando que estão errados, eles realmente acham que estão certos e vão a fundo nessa luta), então, a produção do longa contratou ninguém menos que o conselheiro de Ariel Sharon para tentar ajudar na aceitação do longa.

Talvez o único defeito do filme seja corrigido ao longo do tempo: por conter nomes demais, acontecimentos demais, politicagem demais, é fácil se perder no meio de tantas informações – e, com isso, perder também o interesse do público que quer conhecer melhor o conflito. O número de acontecimentos é grande demais para um único filme: a todo momento temos uma nova missão, uma renovação na história, o que torna ainda mais difícil prender a atenção dos que estão acostumados a linha reta da maioria dos filmes lançados no país.

Porém, as palmas que se seguiram assim que os créditos começaram a aparecer na tela indicam que as pessoas mais casuais querem sim assistir a um filme ou outro mais inteligente. Basta Hollywood seguir o exemplo de Munique e apostar mais no cérebro do que nas cifras daqui para a frente. Uma obra-prima inigualável e um dos melhores filmes da carreira de Steven Spielberg.

Spoiler Area – Leia a partir daqui apenas se você já assistiu a Munique.

Como o filme é lotado de detalhes, ficará difícil me lembrar de tudo o que eu queria comentar na crítica enquanto assistia ao filme. Acredito que a primeira prova de que Munique seria um filme igual aos demais de sua carreira acontece quando não vemos o assassinato dos atletas na Alemanha, logo no início do filme, o que dá entender que Spielberg poderia, mais uma vez, ter se acovardado e que não iria mostrar nada de violência em seu longa. Mero engano. Quando já estamos pensando que nada iria aparecer, tiros e mais tiros nos atiram de volta à realidade, em um filme absurdamente cru (isso é um elogio) e funcionando de maneira bastante eficiente.

Tudo é detalhado. Até mesmo a tela de abertura do longa mostra ter sido pensada, quando Avner descobre que não era o único a estar fazendo tais missões: o filme mostra apenas uma das histórias, entre tantas outras, das atrocidades dessa guerra entre palestinos x israelenses. E Spielberg é corajoso de não puxar lingüiça para ninguém, assumindo uma posição neutra mesmo tendo, historicamente, um papel dentro dessa luta.

Falei mais acima sobre as perguntas sem respostas do longa, e elas são inúmeras: além da assassina, quem diabos era o Papa do filme? Sabemos que ele era o homem que fornecia as informações para Avner, mas quem era ele de verdade? Toda essa seqüência me lembra bem O Poderoso Chefão, tanto no aspecto técnico quanto histórico, o que foi algo bastante agradável de se ver no cinema. Outra pergunta: os bêbados, quem seriam? Seriam meras pessoas andando na rua ou agentes que perceberam o que iria acontecer e evitaram? E no final, estaria mesmo Avner sendo perseguido por alguém em Nova York ou aquilo tudo era um trauma, causado pela sua experiência negativa de vida?

Confesso que, enquanto o filme estava em Nova York, a todo momento ficava procurando se Spielberg teria ou não coragem de mostrar  o World Trade Center. Para a minha surpresa, sua imagem é o plano que termina o filme, e foi perfeitamente enquadrada no conceito de ciclo do longa: estamos falando de terrorismo e, logo após uma conversa que diz que essa luta nunca terá fim, vemos a imagem daquele que seria o maior alvo terrorista nos EUA de todos os tempos, daqui há quase vinte anos. Confesso que fiquei emocionado ao ver o WTC, com a música triste de John Williams tocando, e fico muito feliz em dizer que o filme não poderia terminar mais impactante ou melhor. Meu Deus, que plano é aquele, e que poder ele tem em mexer dentro de nós. Aquela imagem resume todo o filme. É a prova de que a mensagem de Spielberg é realmente verdadeira.

Spielberg, depois de tantos anos, conseguiu nos tocar novamente. Uma obra-prima única, linda, política, cheia de conteúdo e, principalmente, muito corajosa. Vai demorar anos para vermos um filme como esse novamente.

Comentários (0)

Faça login para comentar.