Grosso modo, é possível separar a carreira de cineasta de Adam McKay em dois momentos. O primeiro seria o dos cinco longas-metragens em que Will Ferrell é o protagonista. Ali, costuma-se desenvolver o homem estadunidense comum: um sujeito, em geral, conservador e abobalhado. Era o prato perfeito para as estripulias de Ferrell em um humor muitas vezes classificado como obtuso.
A segunda fase da carreira de McKay iniciaria com A Grande Aposta (2015), em que começaria a debater os meandros da política norte-americana. Ele retrata a mesma tacanhice dos filmes que fez com Ferrell, porém no seio de um complexo contexto político que indica os rumos que o mundo irá tomar. Assim, promove um olhar profundo para as causas da crise econômica dos Estados Unidos em 2008. Já em Vice (2018), há uma radiografia da ascensão de Dick Cheney, que se torna vice-presidente do país no mandato de George W. Bush e, mesmo assim, o homem mais poderoso do país. Aqui, McKay passa a ser lembrado por um humor político mais refinado.
Certamente, essas duas fases têm vários pontos de contato. Afinal, seus primeiros filmes também lidam com a política norte-americana e os últimos, com um humor histriônico. Não Olhe Para Cima (2021), a nova empreitada do realizador parece um amálgama dessas duas fases. Adam McKay, inclusive, afirma ter escrito o roteiro há tempos, mas encontrou o momento perfeito de produção durante a pandemia do Novo Coronavírus.
O filme versa sobre dois cientistas, Dr. Mindy (Leonardo DiCaprio) e Kate Dibiasky (Jennifer Lawrence), que descobrem um meteorito vindo em direção à Terra que irá devastar o planeta. Munidos dessa informação, irão alertar as autoridades competentes para que tomem as devidas providências. No entanto, ninguém parece se interessar no que eles têm a dizer. Da mesma forma, a população parece indiferente à iminente destruição.
Por um lado, é difícil acreditar que o roteiro tenha sido escrito antes da pandemia porque trata-se de uma catástrofe global e o não entendimento da população para o caos que se aproxima. Inclusive, há um paralelo com os dias de hoje, ao colocar em cheque se o meteorito existe ou não, assim como fazem os negacionistas do coronavírus. Por outro lado, é difícil acreditar que esse roteiro não seja um material antigo de McKay, preenchido por sujeitos idiotas como em seus primeiros filmes, mas dessa vez, com uma tentativa de explorar (e debochar) dos meandros da política como em seus trabalhos recentes.
Dessa maneira, Não Olhe Para Cima fica em um meio-termo modorrento em comparação com outros trabalhos do realizador. É um humor político mais superficial do que seus trabalhos anteriores no sentido de ir em busca de uma história chocante e particular e a expor ela desvendando o absurdo da situação. Não há em Não Olhe Para Cima nem a amarração de uma teia política complexa de forma eficaz e criativa (Margot Robbie chega a oferecer explicações tomando champanhe em uma banheira) como em A Grande Aposta, tampouco esquetes encharcadas de explosão irônica em alta voltagem como em Vice.
Afinal, uma coisa é fazer de George W. Bush um pateta que parece não ter noção do cargo que irá ocupar na Casa Branca. Outra, é fazer de Orlean (Meryl Steep) uma presidente abobalhada. Mesmo que a personagem carregue traços evidentes de Donald Trump, a veia ferina de McKay para debochar de figuras políticas não parece tão evidente. Não é por fazer alusão a Trump, que consegue destrinchar sua atuação política na Casa Branca.
Mesmo na condução do filme, o realizador não parece tão à vontade. O início com câmera na mão e espaços escuros logo é deixado de lado e uma direção mais esquemática toma conta. McKay que se caracterizou como um diretor intervencionista que abusava de grafismos e legendas para dar continuidade para suas histórias - os créditos no meio de Vice que alteram os rumos de Dick Cheney são brilhantes - parece esquecer do recurso após utilizá-lo no início para indicar a real existência do Departamento de Coordenação de Defesa Planetária. Da mesma forma, a montagem de seus filmes, dinâmicas e imprevisíveis que valorizam o corte como uma característica da rapidez de seu cinema não aparecem em Não Olhe Para Cima com a mesma intensidade e dinamismo. Nem mesmo os efeitos de multidão amorfa e abobalhada - tão bem utilizado em Ricky Bobby - A Toda Velocidade (2006) para representar os fãs da NASCAR - se comparam com os eleitores da presidente Orlean, que compõem um grupo de pessoas cheias de preconceitos, porém ficam em segundo plano e não são explorados como poderiam.
No entanto, mesmo levando em consideração a inconsistência do humor agressivo de McKay ao tratar de personagens que não são inspirados em sujeitos reais, o que mais pesa contra Não Olhe Para Cima é conduzir uma ameaça externa e, a partir daí, revelar as contradições e a falta de ética do capitalismo. Em A Grande Aposta e Vice, o próprio sistema econômico era responsável pelas destruições causadas e pelo enriquecimento depravado dos poderosos. Por mais que isso exista em Não Olhe Para Cima, não é conduzido com a mesma força, justamente pela base ser uma ameaça externa.
A condição da ameaça externa retira um pouco da força de Peter Isherwell (Mark Rylance), mesmo que seja o melhor personagem da obra. O bilionário que descobre no meteorito uma possibilidade de alavancar ainda mais os seus negócios e reconfigura as ações governamentais conforme considera melhor para si é um personagem que merecia ser melhor explorado. Uma mistura de Elon Musk, Mark Zuckerberg e Jeff Bezos, que tem anseios tanto em criar novas tecnologias para ampliar a forma de capturar os dados das pessoas ao redor do globo, como de colonizar o espaço gera alguns dos melhores momentos do filme. A quantidade de personagens não faz tão bem ao roteiro como em A Grande Aposta. Neste, o grande número de personagens dava a dimensão dos mais diferentes tipos de sujeitos envolvidos, de alguma maneira, na quebra da bolsa. Entretanto, em Não Olhe Para Cima retira a possibilidade de se aprofundar em alguns personagens que parecem ser mais relevantes para o desenvolvimento narrativo.
Mesmo os protagonistas não parecem tão bem elaborados. Dr. Mindy é um cientista sem muito tato social, mas entra na dança dos poderosos e se aproxima cada vez mais deles. Por outro lado, a doutoranda Kate parece carregar certos valores de uma juventude rebelde, não por acaso inicia um relacionamento com um jovem indisciplinado, e não aceita o descaso com que todos parecem tratar o meteorito. Assim, eles que começam como uma dupla se dissociam em certa altura, porém, voltam a manter uma relação de parceria. Leonardo DiCaprio e Jennifer Lawrence estão em atuações histriônicas, mas que não geram humor, algo que os torna superficiais e repetitivos. Embora, seja uma ótima ideia eles se tornarem memes. Aliás, McKay está acostumado com a linguagem da internet e faz incursões certeiras das manifestações das redes sociais antes da chegada do meteorito.
Não Olhe Para Cima parece ser o típico filme de autor da Netflix, em que o streaming convoca diretores reconhecidos para produzir para o seu catálogo em busca de um suposto alto valor artístico - e oferece para esses realizadores valores exorbitantes para produção, além de uma divulgação colossal. Contudo, tudo parece ser muito estruturado, sem possibilidades de uma criação realmente pessoal. O mesmo aconteceu com Alfonso Cuarón em Roma (2018) e Martin Scorsese em O Irlandês (2019). Filmes em que os cineastas entregam trabalhos competentes, mas que parecem estar em um meio-termo de suas filmografias. São filmes que obviamente fariam, porém, não apresentam nenhuma possibilidade de inovação ou mesmo de levar ao limite suas características reconhecidas. Dessa vez foi Adam McKay que fez um filme acima da média, em comparação com as sátiras políticas atuais, mas muito abaixo do que ele poderia verdadeiramente oferecer.
Não Olhe Para Cima é a cara da Hollywood moderna. A depender do ponto de vista de cada um, isso pode significar tanto algo bom, quanto ruim.
Uma crítica social aguçada, que mostra como a ciência é tratada e como o negacionismo tá recebendo mais espaço.