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Críticas

Cineplayers

O inferno de Nápoles.

7,5

As circunstâncias que levaram à realização de Napoli, Napoli, Napoli devem ser levadas em consideração ou ao menos especuladas antes de se pensar sobre o filme. Talvez pouco importa a ascendência italiana do cineasta americano, mas muito da existência do seu filme se deve ao exílio forçado do cineasta, que há cerca de uma década se utiliza de capital estrangeiro para filmar ─ Napoli, Napoli, Napoli é o seu terceiro longa em cinco anos a ser feito na Itália. Abel Ferrara é um filho rebelde de Hollywood, nunca foi muito bem aceito por ela, e o cinema americano sempre teve o hábito de expulsar ou atrapalhar a carreira dos que não lhe são convenientes. Napoli, Napoli, Napoli se trata de uma encomenda, mas sendo dirigido por Abel Ferrara nada é tão simples, daí que o buraco é bem mais embaixo.

O filme foi produzido pela Secretaria de Turismo de Nápoles, mas a julgar pelo que vemos na tela nenhum de nós sentiria a mínima vontade de sequer chegar perto do município italiano. Será o filme resultado de um clamor da própria administração da cidade para que o governo do seu país ou mesmo o resto do mundo olhe com mais atenção para os problemas dela? Mas como se a certa altura em algumas das entrevistas reclama-se do descaso da prefeitura e da assistência social do município? Independente das condições do seu financiamento, Napoli, Napoli, Napoli foi muito mal exibido pelo mundo e surpreendentemente foi lançado no Brasil nos cinemas (ainda que em circuito bem restrito) e agora em DVD.

O filme trabalha com histórias paralelas que se desenvolvem em dois planos, lado a lado: uma encenação fictícia de subtramas de pouca importância envolvendo membros da Camorra em ações por toda a cidade, e uma série de entrevistas com seus habitantes, colhidas entre a população comum, pesquisadores, autoridades e sobretudo um grupo de presidiárias (quase todas condenadas por ligações com tráfico de drogas, mas outras por roubarem alimentos para os filhos ou venda de cds e dvds piratas). Ferrara verdadeiramente olha para o seu material e devolve e tece um olhar melancólico. O olhar do estrangeiro e um passeio pelos horrores de Nápoles. Se os seus melhores longas de ficção costumam ser grandes documentos de nossa época, esse documentário é menos uma denúncia do que um retrato de horror que emerge das condições de quem vive na prisão, da realidade do crime organizado, a vida das famílias e o papel das mulheres, vítimas do poder e da violência masculina.

Sobre um modelo de desenvolvimento que perdura há décadas, mas não oferece perspectivas ou oportunidades, um entrevistado afirma que Nápoles guarda características de algumas metrópoles de países subdesenvolvidos da África ou da América do Sul, onde questões básicas e fundamentais ainda estão por ser resolvidas, e ao mesmo tempo com aspirações e demandas de Primeiro Mundo. Um outro frisa que onde não há desenvolvimento é natural que surja uma economia ilegal que acumula rendas espantosas. A prefeita da cidade (que declara estar no cargo desde 2001) fala com considerável franqueza das péssimas condições de vida e do mercado de trabalho no município.

As guerras entre os clãs trouxeram a tona em Nápoles o horror de uma organização social, uma estrutura baseada nos lucros ligados ao tráfico de drogas. Uma cidade dividida em duas classes ─ uma privilegiada e favorecida, e outra mais negligenciada e abandonada à própria sorte, além de constantemente bombardeada por mensagens de consumo ─, cuja desigualdade gera banditismo e protestos, e onde há pouco trabalho e muito desemprego. São todos escravos de um sistema de valores culturais, um sistema penal baseado em intimidações. “A Camorra somos nós”, lembra uma das presidiárias. A guerra na Camorra não se baseia em princípios, mas em dinheiro. Gangues que se matam para receber uma parte dos lucros de grandes dimensões, que geram uma condição que se propaga e invade Nápoles por todo o lado: o dinheiro da Camorra envolve a renda e os gastos de toda a população. Seja o ato de beber um cafezinho num bar ou comer num restaurante ou comprar um vestido numa loja do centro significa contribuir com a Camorra. É uma forma de antiestado e um poder paralelo ao governo, mas com empresas e funções institucionais, não se sabendo onde começa e onde termina esse poder. O grande fluxo de capital vindo do tráfico acaba até mesmo em atividades legais em circuitos financeiros internacionais, sem ninguém se interessar pela procedência desse investimento.

Os próprios moradores mais velhos declaram que Nápoles não é o melhor lugar para seus filhos crescerem, em bairros onde viver é uma batalha diária contra problemas como a loucura, o isolamento e o desespero de grupos jovens que residem no local. Uma cidade eternamente em tensão como um vulcão, onde todos respiram a violência até quando ela não explode. Uma violência sempre pronta para explodir e percebida até mesmo pela gente comum que não faz parte do crime. Nápoles é um turbilhão no coração da Europa.

O filme inclui ainda um breve lirismo quando exibe cenas de arquivo (em preto-e-branco) ao som de uma velha canção, aproveitando trechos de um antigo documentário enquanto políticos da cidade fazem seus discursos. Nem antes nem depois alguém possui uma resposta clara de como a cidade chegou a esse ponto. Mas Ferrara vai fundo até mesmo com algumas cenas explícitas de consumo de cocaína, e um clímax com um estupro cujas cenas de abuso são intercaladas com planos de crucifixos e imagens de Jesus Cristo na parede. É o diretor imprimindo seu estilo até mesmo numa produção casual e de encomenda como essa, e ele próprio, que em diversos momentos aparece em cena junto de sua pequena equipe (nas entrevistas, principalmente) encerra seu filme com alguns amigos numa apresentação musical enérgica, tocando a canção de despedida ao passeio ao inferno que acabamos de ver. Um filme menor de um cineasta definitivamente maior.

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