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Críticas

Cineplayers

A ácida sátira de Robert Altman ao conservadorismo reacionário norte-americano.

9,0

O canto do cisne de Robert Altman, um dos maiores diretores americanos de todos os tempos, foi o mal recebido A Última Noite (A Praire Home Companion, 2006), sobre a transmissão final de um popular programa de rádio de Minnesota, em que as mais diversas personalidades da música se cruzam em uma multifacetada retratação não apenas do cenário musical americano, como também de sua política e cultura. Embora esteja a uma distância segura da qualidade das maiores obras-primas de seu realizador, A Última Noite fecha o ciclo não apenas de vida do cineasta, como também do estilo que o consagrou, inaugurado em Nashville (idem, 1975).

Embora tenha um currículo diversificado, que vai do belo faroeste Quando os Homens São Homens (McCabe & Mrs. Miller, 1971) ao musical baseado nos famosos quadrinhos de Elzie Crisler Segar, Popeye (idem, 1980), foram os mosaicos sociais da vida americana, nascidos a partir de Nashville, que fizeram a fama e reputação de Altman, em especial no meio cinéfilo. É um estilo que permanece hoje muito ousado, por apresentar uma narrativa difusa, lotada de personagens e situações, porém sem nenhum fio condutor, sem papéis principais ou tramas fixas para guiarem espectador, ocasionando uma múltipla subjetividade nos planos, nas ideias e nas abordagens de um mesmo assunto, sempre costurados em algum pano de fundo típico da cultura americana. No caso de Nashville, esse pano de fundo é um evento de premiação da música country, no Tennessee, no meio-oeste dos EUA.

A geografia permite a Altman satirizar com muita elegância e deboche os mais variados tipos, que representarão, cada qual à sua maneira, a cultura da chamada “Deep America”, ou os EUA profundo, a terra das oportunidades, que inclui os conservadores, reacionários, republicanos e religiosos que compõem a “nata branca” da sociedade de lá. Tudo ambientado em um momento estratégico, que lhe permite discursar, mesmo que por vezes através de discursos cheios de politicagens, temas como a Guerra do Vietnã, assassinatos históricos de figuras políticas importantes e o movimento hippie. Enquanto passeia por tantos assuntos, sem se ater a nenhum por muito tempo, ele ora brinca, ora critica, ora cutuca, ora provoca, ora admira um painel gigantesco de múltiplas formas e origens que forma a cultura americana, sem necessariamente deixar alguma opinião fixa sobre qualquer coisa que seja.

Por se tratar de um filme sem eixo central, em que nenhuma história de algum personagem é particularmente especial, o diretor abusa de um recurso hoje pouco utilizado no cinema, que consiste na interação defasada entre imagem e receptor, através de certo distanciamento que permite uma visão geral do plano. Durante várias tomadas, personagens interagem com situações e pessoas fora do nosso campo de visão, e quando o diretor joga o contraplano da cena, não há nenhum receptor específico a absorver ou reagir a qualquer que seja a ação do personagem transmissor. Cedo ou tarde, essa técnica interfere inclusive na nossa condição de espectador, quando nos damos conta de que temos de aprender a separar o que é importante para nós e o que é simples rotina da realidade do filme.

E por trilhar este caminho constantemente, ele acentua a ironia presente em toda a obra, por tratar com indiferença os conflitos de determinado momento, que logo são esquecidos quando aquele personagem ganha de novo a chance de aparecer. Ele renega o orgulho americano, seu patriotismo, sua autoridade, seu ufanismo, sua imagem polida e hipócrita, seu cristianismo rígido, diante de personagens que por vezes soam tolos e banais, ou mesmo idiotas acompanhando felizes toda a algazarra, com bandeirinhas coloridas e sorrisos ingênuos. Posteriormente, Altman insistiu nessa ideia com Oeste Selvagem (Buffalo Bill and the Indians, or Sitting Bull’s History Lesson, 1976), em que usa a tradicional imagem do velho oeste dos westerns – o gênero americano por excelência – para traçar um retrato sarcástico da sociedade deles, bem no ano da comemoração do bicentenário da independência dos EUA.

Interessante que essa ideia de múltiplas histórias, apesar de não ser original de Robert Altman, parece só funcionar adequadamente em seu cinema, visto que os cineastas que sofreram sua influência, em sua maioria, não conseguem resistir à tentação de criar um objetivo fixo para a história, talvez com medo de não cativar o público, e por isso pecam ao apequenar todas as tramas em coincidências e rimas morais inverossímeis. É o caso de Crash - No Limite (Crash, 2004), em que o diretor, ao invés de apostar em tramas cruzadas sem nenhum personagem central, tenta justamente transformar todos seus personagens em protagonistas, ao uni-los em uma mensagem de uníssono tom conclusivo. É exatamente o oposto do que Altman faz em Nashville, onde as muitas tramas e subtramas servem para dispersar, criar múltiplas perspectivas, jamais unir suas pontas ou estabelecer uma única resolução, até porque a lógica desse formato é oferecer uma ampla gama de pontos de vista sobre um mesmo assunto, como vemos em O Jogador (The Player, 1992), sobre os bastidores do cinema comercial em Hollywood, e Prêt-à-Porter (idem, 1994), sobre o mundo da moda.

Claro que, com seu humor fino e sua ironia mordaz, Altman faz de Nashville um filme propositalmente desequilibrado, excessivo, inconclusivo, e ao mesmo tempo extenso dentro de suas possibilidades, a começar pelo próprio tema musical, sendo a trilha sonora quase que totalmente inédita, composta pelo próprio elenco e, portanto, estranha para o espectador que espera encontrar alguma canção conhecida, até porque não somente o country ganha projeção, como também o folk rock e o pop. Sendo assim, mesmo dentro de sua proposta, ele se mantém indefinível e impede qualquer tentativa de compreensão da sua infinita totalidade, e talvez por isso tenha sido um fracasso comercial, embora tenha sido também o precursor de um estilo único, que só foi de fato continuado pelo próprio Altman, em obras fortes como Short Cuts - Cenas da Vida (Short Cuts, 1993) e Assassinato em Gosford Park (Gosford Park, 2001), e talvez por um ou outro seguidor fiel, como Paul Thomas Anderson em Magnólia (idem, 1999), até por fim ter sumido por completo (pelo menos até o momento) desde A Última Noite, no mesmo ano em que Altman morreu e deixou um imenso buraco vazio no cinema americano – nesta América que ele tanto retratou, satirizou, compreendeu, englobou, rejeitou e, a seu modo, também amou.

Comentários (5)

Adriano Augusto dos Santos | terça-feira, 12 de Novembro de 2013 - 08:44

Que bela descrição Heitor.
Altman faz exatamente isso e como gosto dessa tecnica.
É um prazer acompanhar o foco distante,as multiplas cenas,dialogos inuteis no meio,uma beleza.

Vítor Miranda | terça-feira, 12 de Novembro de 2013 - 09:02

7 Women, The Long Goodbye, Nashville, The Player... Altman é incrivel.

Rodrigo Giulianno | terça-feira, 12 de Novembro de 2013 - 11:39

Valeu!
Um dos meus filmes favoritos
A grande obra-prima de Altman.

Lt. Dan | terça-feira, 12 de Novembro de 2013 - 21:04

Ótimo texto :D
Kadu... HSUAHUSHAHUSHUAHUSHUAHUSHUAHUSHAHUSH

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