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Negra de..., A

(La noire de..., 1966)
8,2
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Críticas

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Navios, utopias e máscaras

9,5

O Homem que matou o Facínora (Man Who Shot Liberty Valance, The, 1962) abre as suas cortinas com o famoso plano aberto registrando a chegada do trem na vida das pessoas daquela pequena cidade fordiana, o cinema de Ousmane Sembène abre-alas com um grandíssimo plano do mesmo tipo, mas aqui com um imenso navio. Contudo, a imponência da modernidade carregada por trilhos terrestres e a imposição de uma mudança simbolizada por aquela grande maravilha da ciência humana revela-se em A Negra de... (1966) de maneira oposta.

 O grande navio que poderia levar a modernidade por continentes, não o faz. A colonização dizimou qualquer possibilidade de ascensão e enriquecimento das regiões exploradas. Tudo que havia de mais valioso fora furtado, e o que pouco valia aos olhos do europeu, desprezado, e deixado para trás como escória.

Dessa forma, quando o rosto de Diouana (Mbissine Thérèse Diop) é filmado em primeiro plano, desenhando uma mulher negra, com um lindo par de brincos a combinar com um colar branco, um vestido muito bem desenhado, e seu cabelo protegido por um lenço, não há interesse de levar nada de Senegal ao litoral francês. A gigante embarcação europeia traz ao território do colonizador uma personagem que enxerga em sua terra natal apenas o retraso. Em seu sapato de salto alto, a jovem mulher dá os seus primeiros passos na França, com a certeza de que havia desembarcado num sonho.

Ainda que o curta-metragem África sobre o Sena (Afrique sur Seine, 1957) seja um enorme marco na cinematografia da África Subsaariana, Sembène inaugura a tradição crítica em longas metragens que se preocupam em destrinchar e problematizar uma espécie de viagem onírica do jovem que enxerga em seu cotidiano apenas razões para partir. Tem na colônia, um ambiente completamente idealizado, e construído pela imposição cultural que a mesma impõe. A sensação de estagnação causada pela permanente pobreza de seu lar, leva-o apenas sonhar com a distância, expatriar-se do caos, e abraça-se definitivamente à dignidade que ele e todos os seres humanos merecem. Casos clássicos, por exemplo, do mauritano Soleil Ô (1969) ou do também senegalês A Viagem da Hiena (Touki Bouki, 1973).

Por maior que seja a máscara branca que um colonizado resolva trajar, o sonho de viver uma vida à francesa desmorona-se rapidamente. Diouana cruza o oceano, e mesmo sem querer, leva Senegal consigo, ainda que seus patrões valorizem o exotismo das estampas, das máscaras decorativas, e do sabor picante da comida senegalesa, há algo que não se pode sentar à mesa: a cor. A protagonista esbarra no racismo, naquilo que o branco enxerga – mesmo aqueles ditos mais abertos e interessados na cultura africana – como inferior, descartável e bestial.

A montagem, sempre ponto de destaque na obra de Sembène – muito por conta da notória influência russa de seus tempos de estudante na União Soviética – constrói uma narrativa que se inicia com a chegada da protagonista a convite de seus patrões e desenvolve-se de forma paralela entre passado e presente. A angústia de Diouana pela falta de perspectiva na sua terra natal é construída com imagens, que descontinuamente juntam-se aos dias de exploração e desprezo na Riviera Francesa.

Além da sábia escolha pela desconstrução temporal da narratividade, outro importante elemento estético fundamental para a formação das estruturas da obra é o recurso da voz-off. Desde o começo do filme, escutamos os pensamentos da protagonista, em suas interações com os patrões, ela permanece num silêncio consentido, rivalizado sempre com a voz direta de seus chefes. Dá-se a ideia de que a protagonista do relato é sempre uma figura acessória, de cunho decorativo para o casal, e que deve portar-se exatamente como um objeto exótico trazido de uma viagem.

 Diouana, mantem-se predominantemente silenciosa, além de não falar muito bem o francês, como qualquer pessoa de bom senso ao chegar de favores, tenta escutar mais do que falar, adaptar-se à sua nova realidade, mas não esconde do público os seus pensamentos. O monsieur (Robert Fontaine) mais ocupado em beber do que qualquer outra coisa, trata de ignorar a sua presença, a madame (Anne-Marie Jelinek) esconde-se nas vestes de boa senhora – postura tão bem retratada, por exemplo, no já clássico brasileiro Que Horas Ela Volta? (2015) – mas logo revela-se uma escravocrata chic, incomoda-se com as belas roupas nas tarefas domésticas, dá-lhe um avental, obriga a sua, inicialmente, babá a acumular funções de empregada doméstica que não haviam sido combinadas, e tudo sem pagar um centavo.

Com as desilusões reveladas pelo seu fluxo de pensamento, o tempo do relato caminha para frente e para trás, enquanto o tempo vivido, deixa sua situação cada vez mais angustiante. A poética de Sembène desmascara o colonialismo nas relações laborais – persistentes até os dias de hoje –; escancara o cinismo do branco europeu que entende a diferença econômica e social entre os continentes; diz a si mesmo oportunizar alguém que necessita de sua ajuda; mais uma vez, retira uma mulher negra africana, não mais à força como seus ancestrais, mas com a mesma sede de sangue e o mesmo egocentrismo histórico demarcado nesse vínculo milenar e desleal.

Um dos momentos mais marcantes desse bom uso estético das ferramentas cinematográficas citadas se dá logo nos primeiros minutos, na sequência de um almoço organizado pela patroa para alguns amigos, mas obviamente preparado pela empregada. Enquanto cozinha um prato de sua região, ela escuta a eloquência de opiniões brancas sobre ela, seu país e o que é ou deveria ser africano, algo que Juneteenth de Atlanta (sério, temporada1; episódio 9, 2016) muitos anos depois traduzirá muito bem numa festa negra, organizada por um intelectual branco que se apresenta como profundo conhecedor da cultura africana, ao ponto de querer explicar a um preto, diante de livros, peças de arte, e toda sua eloquência intelectual, o que é ser verdadeiramente um.

Enquanto escutamos os beberrões apreciarem o picante da comida e despejar atrocidades na mesa, também ouvimos a consciência de Diouana, que é convidada à sala, para cumprir com a curiosidade dos amigos dos patrões. Um dos convidados se exalta, levanta-se, e resolve dar um beijo nela, já que nunca havia experimentado o rosto de uma mulher preta. A câmera de Sembène acompanha por um lado, em plano aberto, toda a fanfarronice permitida pelo ambiente branco, até fechar o plano, apenas nos dois, branco e negra, violência e desconforto. Após servir os caprichos da “Casa Grande”, a mulher recolhe-se em silêncio na cozinha, a madame vai ao seu encontro, apenas elogia o arroz, e pede-lhe um café, a sequência brilhantemente finaliza num fade-out, o fade-in abre-se diretamente num rosto de um menino mascarado – pela mesma máscara que decora a sala do Monsieur e da Madame – na periferia de Dakar.

O trem fordista que levava a modernidade de povoado em povoado na construção de um cinema americano, nunca chegou ao cinema africano, nunca chegou ao continente africano. Além disso, aquele que resolve cruzar os mares, ainda é obrigado a conviver com um oceano, não apenas físico, mas tão poderoso como uma tempestade capaz de naufragar qualquer desejo, sonho ou vislumbre de cor negra em território branco.

Educativo, o cinema de Sembène, já em seu primeiro longa ensina que o que não fora levado embora pelos europeus nos anos de colonialismo desvelado, chega de barco agora já desprezado, um fantasma preto com o seu futuro marcado pela História de sangue e genocídio de seus ancestrais. Pisam em cidades monumentais, donas de grandes construções nostálgicas; reverenciam um tempo de ouro, enquanto em terra firme; vivem uma batalha de minuto a minuto com o mesmo e insistente inimigo de Diouana, agora mais sofisticado, capaz de distorcer e humilhar, indisposto a ceder qualquer centímetro e dono da mesma violência.

A Negra de... (1966) com seus 65 minutos de duração pode parecer para muitos um pequeno navio pirata, em meio a proliferação de um cinema que se utiliza de uma outra linguagem, entretanto marujos e marujas do cinema senegalês como Ousmane Sembène, Djibril Diop Mambéty e Safi Faye enxergam o nosso tempo muito além da fantasia costumeira. O pai do cinema africano tira a máscara da parede de seu público, e a coloca de frente ao rosto negro, leva-o a refletir e punir-se sobre suas posturas e atitudes racistas. Um ataque duro, necessário e inicial coordenado por uma destreza cinematográfica que influenciou, influencia, e influenciará os sonhos de qualquer preto ou preta que pense a sua vida a partir do cinema.

Texto integrante do especial Cinemas Negros

Comentários (3)

André Araujo | sábado, 04 de Junho de 2022 - 12:30

Luta de classes, colonialismo, racismo...as projeções que criamos em outras realidades, geralmente, falam mais sobre as máscaras que criamos para nós mesmos do que sobre elas...

Igor Guimarães Vasconcellos | segunda-feira, 06 de Junho de 2022 - 19:17

Algumas vezes criamos essas máscaras sem perceber, né?

Obrigado pelo retorno. Tenho ideia de fazer mais textos do maestro, vamos ver como isso se desenvolve

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