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Críticas

Cineplayers

Uma geografia do fragmento.

9,0
Não é gratuita a centralidade dada ao movimento do neorrealismo italiano sempre que se retoma à construção de uma estética realista no cinema. Há um entendimento que vai se desenvolvendo no trabalho tardio da geração dos anos 1940, e também no da geração seguinte, de que atender a uma expectativa formal pelo realismo não significa recusar o lugar da ficção. De Europa ’51 (1952) a Um rosto na noite (1957), há uma relação estabelecida entre as formas do realismo — com sua encenação específica — e a construção de uma experiência subjetiva e alegórica, que apresenta os personagens por seus afetos próximos ou por um olhar direcionado a sua participação na experiência comum. É isto que permanece da ficção cinematográfica no trabalho de Claire Denis. Este é o lugar do seu realismo: não a reivindicação por veracidade, mas a busca por fragmentos de pontos de vista da experiência subjetiva.

Nenette e Boni (1996) foi, para mim, uma descoberta mais recente da obra de Denis. Mas me toca no filme justamente o reconhecimento daquela juventude que representa como uma performance. Denis não se aproxima da periferia (e, especialmente, de uma experiência periférica da juventude) com o naturalismo moralista que se tornou tão usual nesse conjunto temático (gravidez na adolescência, negligência parental, etc.). Ela reconstrói a experiência comum pela junção de fragmentos cotidianos, afetivos, sensíveis. E não é, também, uma forma que, como em seu Bom trabalho (1999), justifica-se numa diegese específica do personagem (no caso de Bom trabalho, a da memória). Aqui, em Nenette e Boni, parece que o interesse pelo fragmento se afirma como o cerne da sua estética realista e da sua leitura social, o que se repetirá, por exemplo, em 35 doses de rum (2008).

A performance da juventude que resulta dessa abordagem é, então, uma que se revela na ansiedade violenta dos corpos. Isso parte não apenas do trabalho dos atores (que estão sempre muito conscientes da presença do seu corpo em cena), mas também de uma aproximação da câmera mesma de Denis, que parece buscar — no enquadramento das posturas, no interesse pelo toque e na relação que estabelecem com seu próprio corpo e com o corpo do outro — considerações sobre o lugar (lugar literal, da presença do corpo no espaço) que seus personagens habitam no mundo.

Em Minha terra, África (2009), vemos Denis dedicar o filme às crianças rebeldes. Mas acho que é em Nenette e Boni que esse aspecto infantil da rebeldia — presente na filmografia de Denis pelo menos desde Noites sem dormir (1994) —, recebe uma atenção exclusiva. Os dois protagonistas do filme, irmãos que se veem reconectados numa situação de silencioso desespero, são colocados nesse lugar entre a angústia mimada e a revolta justa.

A reaproximação não se dá sem conflitos. Esses corpos precisam reconfigurar a dinâmica de um estar junto, de uma intimidade, a partir não só do afeto que sentem um pelo outro, mas também do rancor pelo próprio isolamento, pelo abandono a que foram deixados. A diferença, talvez, entre os outros filmes de Denis, é que esses personagens estão já muito próximos: essa reconexão é uma entre irmãos, não entre colonos e nativos ou entre imigrantes estranhos um ao outro. O vínculo entre eles, portanto, é marcado por carinho tanto quanto por um estranhamento.

Denis nos apresenta esse vínculo de dois corpos marcados pelo afeto (um afeto estranho, angustiado e rebelde). E, como em outros de seus filmes, a cineasta permite que a experiência afetiva dos seus personagens se confunda com a experiência sensível mais ampla deles mesmos ou de um espaço que habitam. É muito marcante, para mim, a inserção de uma música como God only knows no espaço dos personagens. O que traz essa música? Mais um fragmento da experiência alcançado por Denis? Um desvio, marcado pela sua construção ficcional?

O extradiegético em Denis me parece, geralmente, ser os dois. Talvez essa ambivalência seja ela mesma uma chave para a leitura da experiência no espaço comum — e por isso, quem sabe, a estética realista lida tão bem com o fragmento e o desvio. No cinema de Denis, sempre dedicado a um reconhecimento da geopolítica contemporânea, esse espaço comum nunca está resolvido em uma conclusão moral ou em um pertencimento. As tensões de seu realismo se dão pela instabilidade da relação de seus personagens entre si e, consequentemente, com o espaço que compartilham.

Se é dessa maneira que se forma a experiência comum, o realismo não pode nunca esperar que uma leitura da sociedade esteja já resolvida em uma única “realidade”, sem conflitos ou contradições. Fico feliz que outros cineastas contemporâneos sigam esse entendimento — como Sean Baker, que, em Projeto Flórida, entende, por um caminho bem distinto, que o realismo precisa se desvincular de si mesmo para operar como ficção —, assim como fico feliz de ver Claire Denis dando continuidade a um cinema que traz adiante a política do corpo como indistinta de uma política do espaço compartilhado, relendo a geografia a partir do fragmento.

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