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Críticas

Cineplayers

Uma obra-prima baseada em uma notícia de tablóide, transformando a banalidade da mídia em arte de cinema.

9,5

O filme começa da seguinte maneira: uma mãe e seu filho adolescente se mudam para um apartamento nos subúrbios de Tóquio, carregando com cuidado a bagagem da mudança para cima. Ao entrarem no apartamento, a surpresa: em duas das malas, estavam os irmãos pequenos, que se divertiam pela aventura de entrarem escondidos. Mais tarde no dia, Akira, o primogênito, vai à estação buscar sua outra irmã, que tem de entrar no apartamento escondida, e a prole estará completa.

Uma mãe solteira e quatro filhos pequenos habitando um apertado e escuro apartamento, sendo que os três mais jovens são, e devem, permanecer fantasmas para os vizinhos e a comunidade. Poderia ser orquestrado como uma comédia, e os primeiros minutos de fato nos dão esta impressão, mas o tom do filme vai mudando gradativamente, à medida em que o clima de otimismo de uma família arquitetando planos para a nova vida se torna caótico, com os freqüentes e prolongados sumiços da mãe.

A trama, baseada no fato real ocorrido no Japão no fim dos anos 80, onde quatro irmãos abandonados sobreviveram sozinhos por meses sem ninguém se dar conta, é centrada não nas peripécias dos garotos para tentar sobreviver - apesar do assunto ser constantemente abordado -, mas sim em sua calada busca por identidade. Quatro irmãos, todos de pais diferentes, se vêem gradativamente perdidos na selva urbana sem a esperada ajuda materna, confinados num apartamento a margem da sociedade, sem poderem contar com a ajuda dos outros.

Sua situação quebra a harmonia tão necessária para a boa convivência e é um inconveniente preferível a ser ignorado por todos; é vantajoso, inclusive, para os garotos, uma vez que seriam separados caso o serviço social os encontrasse. Eles têm de aprender a viver como uma família o mais rápido possível, mesmo que as experiências de vida e o dinheiro sejam extremamente escassos. Nada é comentado, e o entendimento mútuo é mantido num nível superficial por boa parte da projeção - mesmo que seja fato previsível que a mãe não iria retornar, em um determinado momento, Kyoko, a segunda mais velha, impede o irmão de vender as roupas da mãe, numa esperança cega, misturada com o pavor, de finalmente admitir a alto e bom som que estavam por conta própria.

Akira, com seus jovens 12 anos, é o primeiro a perceber a verdadeira faceta da situação e logo se prontifica a assumir a responsabilidade pelos irmãos, mesmo que, para protegê-los, resolva carregar o peso sozinho. Aqui sobram elogios à forte atuação de Yuya Yagira, que ganhou o prêmio de melhor ator no festival de Cannes ano passado. Amedrontado, mas sem nunca deixar transparecer suas preocupações, Akira passa todo o longa com um olhar passivo, perdido em divagações, na confusão mental de suas recém-adquiridas responsabilidades e o peso do rápido amadurecimento. É um personagem em desespero, o mais dos quatro, e ainda assim passa a projeção sem derramar uma lágrima, mesmo quando qualquer outra pessoa teoricamente mais equilibrada o faria; ele sabe o quanto inútil seria isto, e o quanto seus irmãos dependem dele. A constante batalha pela formação concreta de um núcleo familiar é, certamente, uma questão de sobrevivência, como manda a regra da boa conduta, mas por vez ou outra ele deixa escapar mostras do amor pelos garotos (que nunca soa piegas).

O garoto Shigeru e a caçula Yuki passam o dia inteiro em casa, entediados, enquanto Kyoko se contenta em tocar seu piano de brinquedo (numa melancolia transbordante, visto que seu talento está sendo desperdiçado); nada mais natural para Akira, o único com 'permissão' para sair de casa, querer se afastar deste ambiente, e é nesta hora que seus 12 anos pesam. Ele faz amigos com garotos de sua idade, e o que era para ser apenas uma diversão de passatempo, acaba se tornando regra, deixando a casa ao abano. É espantoso ver, numa cena, a casa transformada num antro de videogames, lotada de garotos se divertindo com a aparente anarquia da ausência de uma figura de autoridade, enquanto pilhas de lixo vão se acumulando nos cantos, e os outros irmãos postos no canto, apenas a observar a diversão dos outros (Kyoko, para passar o tempo, desenha rostos em cima da conta de gás). Ao perceber que falhou com os irmãos, passando metade do filme tentando funcionar como uma família típica japonesa, Akira consegue a tão almejada funcionalidade a partir do momento em que se desvencilha das amarras e desafia o mundo, resolvendo sair todos juntos para ajudar nos afazeres.

Deste momento em diante, o tom do filme muda, ou melhor, volta àquele do início, num clima de esperança renovada. Voltamos a ter a presença de música e mesmo os problemas que vão se acumulando, como a falta de água e luz, parecem facilmente driblados pelos garotos. Temos também a inclusão de uma nova personagem, a adolescente Saki, garota rica que acaba afeiçoada da trupe. Aqui, vemos novamente uma crítica à sociedade: Saki tem a vida considerada ideal, com um lar confortável e boa escolaridade, mas sua dificuldade de se adaptar à harmonia a leva a encontrar algo próximo de um lar no grupo de irmãos, que vivem numa situação considerada absurda. Mas, apesar destas sutis alfinetadas, o filme está longe de se tratar do tema, preferindo se movimentar num âmbito muito mais universal, focando sua atenção à interação dos indivíduos em si mesma. A partir do momento em que eles de fato se tornam uma família, o papel da sociedade é diminuído drasticamente.

Aliás, o filme inteiro é construído nos pequenos detalhes. É necessária a devida atenção para captar seu charme. Apesar de ser um acontecimento real, os personagens são fictícios, bem como a aproximação da realidade. A câmera vai buscar a ação, com closes nas mãos, pés, rostos e outras partes do corpo, ao mesmo tempo em que apresenta uma construção fragmentada do espaço; neste sentido, ele se aproxima do cinema de Kitano, inclusive com diversos planos que parecem ter saído direto de seus filmes.

Mas este é, sem dúvida, de autoria do Koreeda. As atuações contidas (com exceção de Shigeru) são menos uma opção estética que de roteiro, e o tom documental está muito presente na edição. Com cenas prolongadas além do tempo de duração da ação em primeiro plano, a câmera sempre busca algo a mais, o fator de imprevisibilidade que possa ocorrer entre um plano e outro. O filme acaba também se tornando extremamente intimista e pessoal. Raramente somos autorizados a penetrar no conturbado passado dos garotos, e até mesmo em seus sentimentos.

Uma cena em especial é retratada com tamanha distância, que nos toma de surpresa quando finalmente cai a ficha. Mesmo sem fugir a alguns clichês (como o batido roube-aquilo-porque-somos-amigos), esse caráter pessoal impede que o filme se torne um melodrama sentimental (certamente teria o potencial para um) ao se satisfazer em documentar o passar do ano das crianças, sem se envolver ou fazer julgamentos. Mesmo a mãe, que foi transformada num monstro pela mídia no caso real, é retratada como uma mulher que ama seus filhos, mas se mostra tão indecisa e infantil quanto eles.

Não se engane, é um filme extremamente triste, mas se você se mantiver a uma certa distância emocional, como faz a câmera, perceberá a beleza incrivelmente delicada e o sutil otimismo de uma história universal sobre a irmandade que transformou uma manchete de tablóides em obra-prima.

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