Um corpo estranho na filmografia de Joseph Losey. Um helicóptero que desponta na linha do sol com o horizonte, e uma dupla de homens a correr em disparada na costa do mar rumo às montanhas em imagens turvas e escuras que vão se tornando mais nítidas com os personagens chegando à vegetação. No Limiar da Liberdade (Figures in a Landscape, 1970) é intrigante desde a sequência de abertura: um filme em que os protagonistas estão em confronto com a vastidão do mundo, no caso o de uma paisagem montanhosa em um país não-especificado. O cinema reduzido a sua mais pura essência. As falas são restritas a uma quantidade mínima (os diálogos o são numa medida tão justa que, um espectador pode reclamar do filme ser silencioso em excesso, enquanto outro se queixar dele ser falado demais), as justificativas que alguns podem aguardar jamais acontecem, só o que presenciamos é a experiência que vai se acumulando até a exacerbação em torno de jogos perversos envolvendo a imensidade da natureza, o desamparo do homem em meio dela, e a potência da máquina que a tudo vigia e aniquila quando o quer.
Conhecemos seus nomes, porém nunca descobrimos quem são Ansell (Malcolm McDowell) e Mac (Robert Shaw), que surgem em cena de mãos atadas correndo em círculos num deserto inóspito e intransponível, fugindo por um motivo que nunca nos é esclarecido. Podem ser bandidos comuns, delinquentes perigosos ou guerrilheiros e presos políticos, ou então simples inocentes perseguidos injustamente por uma força muito maior, eis algumas das tantas hipóteses que podem ser sugeridas. Não importa. São homens, seres em confronto com uma força opressora a qual não conseguem enfrentar, e isso realmente é o que vale, numa situação-limite em que eles parecem destituídos da própria identidade, o que só reforça que os motivos e os dados referentes à história e aos personagens estão distante dos reais interesses de Losey, o que ao invés de torná-lo superficial, transforma o filme como possuidor de uma metafísica impressionante.
Essa força mencionada acima é representada pelo misterioso helicóptero negro que caça os dois fugitivos, irrompendo na tela de tempos em tempos, cercando-os, se aproximando deles, intimidando-os a um fim inevitável. Mal conseguimos ver quem pilota o veículo, que se converte num símbolo a mais na alegoria total desse grande filme de ação que é Figures in a Landscape. Por que se o filme aposta alto nessa metafísica do homem acuado por poder superior vindo dos céus (seria o confronto dos homens contra os deuses, procedimento comum na tragédia grega?), ele se sustenta mesmo é na sua ação vertiginosa, mesclando um estilo minimalista com passagens de um grande virtuosismo cinematográfico, conduzido com um ritmo nada gratuito. Como se girasse do inicio ao fim em suspensão expandindo a famosa cena de Intriga Internacional (North by Northwest, 1959) em que Cary Grant é perseguido por um avião, Figures in a Landscape ocupa um lugar à parte na carreira de Losey, por prenunciar um cinema do futuro repleto de movimento e tensão. Os protagonistas também param, conversam, descansam ou simplesmente caminham no deserto nas horas em que o helicóptero some de vista. Mas sempre voltam a fugir disparando do seu obstinado inimigo nas vezes em que o helicóptero fatalmente reaparece. Numa dessas ocasiões encontram um vilarejo próximo do deserto, onde são vistos como criminosos pela população local, roubando roupas e comidas para depois retornar às montanhas, tendo que lidarem com a perseguição de outros soldados que parecem se somar ao helicóptero negro que os espera para continuar no encalço dos dois (anti-) heróis.
Em suas pequenas e grandes acelerações e pausas ocasionais, Losey faz com que o público experimente as sensações físicas e psicológicas dos protagonistas e com a própria matéria do que é mostrado no filme, num trabalho de encenação que por vezes preza pelo contemplativo em relação à grandiosidade e beleza plástica de suas paisagens, e com um gosto para sequências viscerais, e imagens dotadas de uma força e apelo muito direto, com as trocas de tiros e o fogo advindo das explosões como num combate de guerrilha, ao mesmo tempo em que beirando situações que mal conseguimos acreditar, como se estivéssemos diante de um game envolvendo fuga e caçada, esconderijo e mortes nas armadilhas a campo aberto. Ainda que o estilo visual e narrativo de Losey em nenhum momento possa ser confundido com o de videogame, estando mais próximo dos sonhos e nada mais.
Ou de um pesadelo kafkiano ao contar o real e o absurdo com grande naturalidade em direção a catástrofe. Talvez o espectador típico que procura enredo e ação deva se manter afastado de Figures in a Landscape. No entanto, é um filme que conquista quem percebe o quanto de enredo (ainda que mínimo) e ação contém ali. Críticos diversos apontam as semelhanças entre ele e Encurralado (Duel, 1971), de Steven Spielberg, mas se elas existem, importante notar também suas distinções: se no filme de Spielberg o que há é uma luta do protagonista em retornar o mais rápido possível à ordem como ela era antes, no de Losey a tragédia já se encontra consumada, com um pedaço de mundo e homens num estágio terminal e de destruição. Pelo menos para Robert Shaw (em magnífico desempenho, composto quase que exclusivamente por um trabalho de fúria e gestual impressionante), de arma em punho e atirando pro alto, resistindo até o último momento, a perfeita tradução da imagem da derrota com honra. Dignas de notas também são as conversas e monólogos dos protagonistas quando escondidos na caverna. Como Kafka resumiu, esperanças há muitas, mas não para nós.
O Criado também é op!
Rodrigo, bem lembrado! Dizem que \"O Criado\" que deu notoriedade à ele, mas realmente não assisti ainda, quero conferir também!
Cidadão Klein e assassinato de trotsky também são muito bons...
Meu preferido do Losey, dos só 5 que assisti, é um não muito lembrado: O Cúmplice das Sombras. Gosto mais dele que de O Criado.