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No Mundo de 2020

(Soylent Green, 1973)
7,3
Média
58 votos
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Críticas

Cineplayers

Distopia não tão distante.

9,0

Poucos gêneros encontram tantas oportunidades de ressignificar aos seus próprios clichês do que a ficção científica. Seja na literatura, de H.G. Wells, passando por Isaac Asimov e George Orwell até Philip K. Dick, ou no cinema, de George Meliés e Fritz Lang até Kubrick e Spielberg, a ficção científica sempre esteve apoiada no experimentalismo da encenação, da ambientação e de uma visão futurista empenhada em equilibrar o futuro entre a evolução e o retrocesso. De tantas e tantas visões que o cinema já pariu sobre o que os novos anos, décadas e milênios nos reservam, No Mundo de 2020 talvez seja um dos projetos mais potentes e apaixonados nessa representação.

O passar dos anos trouxe uma ironia mais que bem-vinda ao filme de Richard Fleischer: assistindo nesse exato ano de 2020, nossa realidade flerta com força com o que é representado no filme, e ao mesmo tempo notamos certa distância nesse radicalismo social, enquanto que ao mesmo tempo parecemos caminhar justamente para o que é construído em tela: o efeito estufa atingiu seu ápice. Em Nova York, há 40 milhões de habitantes que agora vivem seja dentro de espaços apertados ou mesmo dormindo em escadas, já que não há mais espaço para abrigar tantos corpos, uma vez que somente os ricos usufruem de moradias luxuosas e com o mínimo de conforto. Mulheres agora são chamadas de “mobílias”, entregues junto com imóveis quando algum comprador adquire um novo apartamento. Há racionamento extremo de água e comida. Proteínas e frutas agora pertencem aos mais ricos, enquanto o povo pobre se contenta, principalmente, com o Soylent, uma ração vendida nas cores vermelha, amarela e, a mais popular delas, verde. Sem recursos naturais, a população luta para sobreviver com tão pouco.

Dentre eles, há o detetive Thorn (Charlton Heston, de Planeta dos Macacos), que vive com Sal Roth (Edward G. Robinson, de O Estranho, em sua última e comovente atuação no cinema), e que se empenha em trazer para o velho amigo objetos (agora valiosos) roubados das casas como sabonetes, colheres, toalhas de algodão, enquanto Sol vasculha livros antigos em busca de informações. Thorn se vê subitamente lançado numa teia de descobertas impensáveis quando um dos responsáveis pela empresa Soylent é assassinado e ele é designado para desvendar o caso.

Salta aos olhos, e não somente no início, a ambientação inexplicável de sujeira, desespero e miséria que Fleischer evoca através de cenários, figurinos e objetos, numa construção gradual, porém intensa, daquela realidade. Os apartamentos luxuosos, mesmo pertencendo aos ricos, são vazios em decoração e ornamentação. Thorn vive com um lenço no pescoço, que usa para limpar constantemente o suor do rosto. Em meio a uma confusão de grandes proporções na feira de Soylent, caminhões com pás de retroescavadeiras (os únicos veículos em funcionamento do filme) são utilizados para “varrer e jogar” a população, como se estivessem recolhendo lixo. No Mundo de 2020 se constrói sob diversos dos clichês futuristas e distópicos que podemos conhecer, e nas mãos de Fleischer, tudo se ressignifica para atenuar a opressão social e econômica do planeta em 2020, num atestado muito poderoso do quanto a representação imagética do filme se tornou tão rica com o passar destes anos. Não estamos no 2020 imaginado por Fleischer, mas estaríamos assim tão distantes dele?

E surpreende muito mais o quanto Fleischer, ao lado do roteiro de Stanley Greenberg, evoca um sentimento tão comum a nós quanto o desespero pela insegurança social: a saudade. Enquanto imagina esse futuro destrutivo, há todo um passado sendo descrito e desenhado fora de plano nas lembranças de Sol, que vive muito mais pelo resgate memorial de quando o mundo era próspero, quando as ações do homem não haviam destruído sua própria vivência. Robinson, à época das filmagens, estava na luta final contra um câncer e, de forma lúgubre ou não, tal fato potencializa ainda mais o filme em sua dramaticidade; seu momento final, ao som de composições de Beethoven e Tchaikovsky, em meio a projeções das belezas naturais de outrora, carregam uma forma descomunal de comoção, funcionando como a despedida perfeita para o ator, que faleceu 10 dias após o fim das filmagens.

Dentro de temas tão comuns a esse gênero como aquecimento global, tecnologia, esgotamento dos recursos naturais, No Mundo de 2020 elabora para si um futuro extremamente original para o gênero ao qual pertence (confesso que a sequência das escavadeiras, em especial, provavelmente não sairá nunca da mente), e ao mesmo tempo nos parece tão comum e clichê pela forte identificação com nosso caminho atual. Seja como produto cinematográfico ou representação social, se torna ainda mais obrigatória a descoberta deste filme de Fleischer para a realidade global.

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