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No Silêncio da Noite

(In a Lonely Place, 1950)
8,5
Média
235 votos
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Críticas

Cineplayers

Nicholas Ray em seu ápice no manejo psicológico dos personagens.

5,0

O crítico Jean-Luc Godard escreveu na Cahiers du Cinéma certa vez que o maior diretor de cinema do mundo seria a fusão entre Nicholas Ray e Anthony Mann. Para ele, Mann era um grande diretor de ação externa, enquanto Ray sabia como ninguém trabalhar o plano emocional. Esse potencial de Ray com o manejo psicológico atinge o seu auge na construção de Dixon ‘Dix’ Steele, personagem central do drama noir No Silêncio da Noite, de 1950.

Steele é um roteirista de Hollywood que há muito não produz; exatamente desde que partiu para o front na Segunda Guerra Mundial.  As marcas deixadas pelo conflito tornaram-no uma pessoa instável e violenta, ainda que de caráter sem manchas. Até que um dia ele se torna o principal suspeito de ter assassinado uma mulher. Sequer abalado, conta com a ajuda de uma vizinha, que de álibi se transforma no grande amor de sua vida, até que a sua natureza agressiva acabe despertando dúvidas nela a respeito de sua inocência.

Um dos diálogos de No Silêncio da Noite traduz muito da concepção fílmica de Ray observada por Godard. Quando Steele pergunta a futura defunta qual é sua idéia de filme épico, ela responde que é “um filme muito longo onde acontecem muitas coisas”. E é esse tipo de tratamento que Ray não abordava, tanto é que aqui toda a problemática da investigação do assassinato fica em segundo plano – assim como a crítica aos bastidores de Hollywood –, enquanto a transformação de Steele como pessoa se enxerta como mote. De habilmente cínico ao romanticamente apaixonado, Ray conduz com propriedade a mudança que ocorre em seu personagem principal, interpretado por Humphrey Bogart em, talvez, seu melhor trabalho no cinema.

Infelizmente, Ray não consegue ter o manejo suficiente para dar conta dos gatilhos dramáticos que fazem fluir a trama. Soam artificiais, por exemplo, as seqüências da ficcionalização do estrangulamento em um jantar, e do desequilíbrio de Steele ao saber que a amada esteve na delegacia para um depoimento e não lhe contou – motivo para uma desembestada saída de carro e uma posterior briga de trânsito.  Para não culpar somente a Ray pela falta de maior sutileza, há de se creditar essas cenas também ao roteirista Andrew Solt, que não escreveu algo mais plausível para o chamado segundo ponto de virada, eternizado pelos manuais de roteiro de Syd Field.

Curiosamente, quando o filme começa a caminhar para a resolução, Ray e Solt abdicam de toda a estrutura narrativa construída anteriormente para mergulhar fundo no melodrama. Há uma seqüência típica de um filme de Douglas Sirk: Laurel Gray (Gloria Grahame), a tal amada de Steele, ao começar a desconfiar do namorado, passa a tomar pílulas para dormir; há um plano fechado de um relógio, para depois aparecer a imagem dela se debatendo na cama fundida com outras, como a da massagista e a do capitão de polícia, emolduradas por vozes em off.  A seqüência se fecha com a frase “a morte o fascina”... ela gargalha sozinha, ainda em transe, e a música se torna grandiloqüente.

O que há de melhor no roteiro de No Silêncio da Noite é que seus personagens são postos à prova por outros personagens, criando sempre uma ponta de dúvida. Por pelo menos duas vezes isso acontece: uma, com a já referida cena de Steele induzindo um casal a reproduzir a cena do crime (e a iluminação somente nos olhos de Bogart não é nem um pouco sutil); a outra é quando a massagista coloca em questão os verdadeiros sentimentos de Laurel Gray por Steel ao afirmar que “no início havia a terra, os filmes vieram mais tarde”.

O final, amargo na resolução e na repetição do “Eu nasci quando ela me beijou, morri quando me deixou, e vivi algumas semanas enquanto ela me amou”, retoma o nível da primeira hora do filme, na qual Ray apresenta o melhor de seu cinema. Steel, ao perder Gray, contradiz uma das mais célebres frases do filme, a do detetive Brub que diz que “é difícil dizer o que Dix sente; nós nunca o entendemos”. Naquele momento, sabemos exatamente a dor do personagem.

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