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Críticas

Cineplayers

Um dos mais importantes faroestes do cinema, deixou legado que transcendeu o próprio gênero.

8,5

Muito mais do que um clássico absoluto, No Tempo das Diligências é um marco da história do cinema, um divisor de águas. Motivos para tal atribuição são muitos. Este emblemático filme de faroeste é praticamente a súmula do gênero western, reunindo todas as características do estilo de uma maneira inventiva, dando novo impulso a este formato, nos idos anos de 1939.

É curioso pensar que este filme, que ressuscitou o filão num momento onde o western era visto como um gênero ultrapassado e pouco comercial, tenha sido o responsável por revelar ao mundo a maior estrela da história dos filmes de faroeste, a encarnação do cinema de bangue-bangue em pessoa: John Wayne.

Até então um ator de filmes pouco expressivos, Wayne já havia tido suas incursões no cinema, como em A Grande Jornada (1930), mas nada o alavancou mais do que esta produção. Aqui se consolidaria de forma definitiva a parceria entre Wayne e o diretor John Ford, que viu naquele rapaz um tanto rude e explosivo a personificação do caubói destemido. Wayne serviu de arquétipo de herói norte-americano, do homem simples e de personalidade forte, que doma o imaculado território estadunidense como um vaqueiro domestica seu gado. E é já na sua primeira aparição neste filme, em torno dos 18 minutos, como o pistoleiro e fugitivo da cadeia Ringo Kid, o plano em que Ford enquadra seu rosto como quem anuncia o nascimento de um mito.

A saga narrada em No Tempo das Diligências ainda hoje tem sua originalidade. Nos EUA ambientado no Velho Oeste, com seus saloons em vilarejos interioranos, o transporte é feito via diligências, aquelas antigas cabines conduzidas por cavalos. Eis que a diligência retratada por Ford é encarregada de levar nove pessoas ao destino de “Lordsburg”, onde cada passageiro tem sua razão pessoal para estar lá. O de Ringo Kid (John Wayne), não poderia se encaixar melhor ao estilo, descendente dos filmes de perseguição e tiroteio:  vingar-se dos irmãos Plummer, que assassinaram seu pai e irmão.

O grande desafio da diligência está em cruzar a aldeia dos índios Apaches – remetendo ao mote clássico do faroeste, o do coubói versus o índio. Mas Ford, que se definia como um “diretor de westerns”, raramente caia em fórmulas fáceis, e de certa forma sempre incluiu elementos de subversão ao gênero. Destes nove personagens da diligência, conhecemos o universo e o drama pessoal de cada um. Temos desde o apostador de cartas, ao traficante de bebidas, passando pelo médico alcoólatra (Thomas Mitchel ganhou o Oscar por este papel). Não há uma visão romantizada do norte-americano. Os personagens de Ford são marginalizados, outsiders, que encontram na viagem ao seio da América uma jornada a própria essência daquela nação. E os índios, como afirma o crítico Edward Buscombe (autor de livros sobre o cinema de John Ford), não são tratados de forma individual, mas simplesmente como uma força da natureza.

Mas, talvez a maior contribuição de No Tempo das Diligências para a sétima arte  seja no que se refere a sua linguagem cinematográfica. Ford era antes de mais nada um esteta, um homem que conseguia fazer cinema de autor dentro de propostas comerciais do sistema de gêneros imposto pelos estúdios. Orson Welles, quando questionado quais seus três diretores favoritos, respondeu categoricamente: John Ford, John Ford e John Ford. Cidadão Kane (1941), que é considerado a maior obra-prima de toda a história do cinema, encontra sua maior influência justamente neste filme. Tudo isso simplesmente pela forma particular como Ford olhava o mundo. Aqui ele abusa dos contra-plongées, e torna notório o modo como enquadrava ambientes internos utilizando uma grande amplitude focal. Desse modo, passamos a enxergar o teto dos ambientes, utilizando-os como recursos narrativos, como signos visuais. As ações se desenrolam em planos que são verdadeiras obras pictóricas, sem grande fragmentação na edição.  Janelas e portas servem para emoldurar os cenário e as paisagens que se desenrolam no horizonte  – referências ao próprio cinema.

Outro aspecto que marcaria muito a concepção de Kane é quanto ao uso dramático da profundidade de campo. Utilizando uma abertura de diafragma (íris) bastante fechada, Ford conseguia captar detalhes bem distantes  em termos de profundidade, gerando ações que se desenrolam simultaneamente no mesmo quadro, dando uma nova dimensão ao cinema, que nasceu predominantemente chapado e sem muita perspectiva. Ford consegue isso com um sofisticadíssimo uso de luz e sombra, numa cartilha que fez a cabeça do novato Welles.

Em 1939 ainda não havia o formato Cinemascope, que permitia ao cinema o formato widescreen, com sua grande amplitude horizontal. Ford compensa isso nos diversos enquadramentos que faz nas pradarias do Monnument Valley, na divisa entre os estados de Arizona e Utah. Para compensar o formato até então quadrado do cinema, preenchia quase todo o quadro com o céu e a paisagem natural, reservando um pequeno espaço na base do para o solo, um recurso que foi utilizado inclusive no final de ...O Vento Levou, após o discurso inflamado de Scarlett O’Hara. Com isso Ford conseguiu dar uma noção visual da dimensão e da vastidão e complexidade que é o território norte-americano, com suas disputas entre homens e índios, bandidos e mocinhos. As colinas de arenito do Monnument Valley viraram símbolos do próprio faroeste. Talvez por sua perenidade, por sua capacidade de resistir ao tempo e registrar toda a história de uma nação e de um cinema – algo que No Tempo das Diligências representa.

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