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Críticas

Cineplayers

Ao usar dispositivos narrativos pobres, Fuqua deixa seu filme muito aquém do que deveria ter sido.

7,0
Não há de fato um nocaute em Nocaute. O nome original do novo filme de Antoine Fuqua [diretor de Dia de Treinamento (Training Day, 2001), pelo qual Denzel Washington veneu seu Oscar] é Southpaw (2015), que é o termo de um golpe do boxe onde um canhoto aplica um soco com a mão direita no maxilar do adversário, com o pé direito colocado à frente, seguindo com um cruzado de canhota no lado direito do rosto do oponente. É o golpe que credencia Billy Hope (Jake Gyllenhaal) a ser campeão em uma luta contra Magic Escobar (Miguel Gomez), numa disputa de pontos bastante apertada.

O confronto entre Billy Hope e Magic Escobar é, para a história, muito mais do que uma luta de boxe. É o último obstáculo que Billy tem de enfrentar para conseguir superar a morte da esposa. Meses antes, uma série de eventos hostis e circunstanciais acabaram por levar a esposa de Billy, Maureen (Rachel McAdams) à óbito. Não é vingança que Billy procura, porém. Magic Escobar é apenas a personificação, para Billy, de seu próprio trauma e de suas próprias invirtudes.

O culto ecumênico cinematográfico de Nocaute martiriza a pobre Maureen para que Billy enfrente veementemente suas limitações, superando-as. Entre seus defeitos, estão: uma forte inibição, ressaltada ainda mais pelo vocabulário humilde e limitado; problemas terríveis de humor, de descontrole, com surtos de raivas e explosões de violência; ultradependência de Maureen, confiando que a esposa lidará com todos os problemas, restando a ele apenas a incumbência de pôr em prática o que ela determinar.

Me refiro à ferramenta narrativa de matar a mulher do personagem principal como um sacrifício em um culto religioso porque é justamente isso que se parece. O sangue é derramado no opulento altar, dando início aos excessos, o suor, lágrimas, pulo, socos, rodopios. O objeto de culto é Billy Hope, cujos pecados são expiados pelo sangue lançado ao chão.

Além de Maureen, outros personagens transitam pela história para catapultar emoções reservadas à Billy Hope, para estimulá-lo ainda mais a buscar sua redenção. O treinador Tick Wills, por exemplo, trás consigo certa carga dramática própria, mas o filme não faz muita questão de desenvolvê-la. Ele é um homem velho, caridoso e extremamente solitário. Essas características estão ali, claramente expostas pelo personagem, mas Fuqua não sabe o que fazer com elas. É o caso também de Hoppy, adolescente que treina com Tick e atua meio que como um pupilo de seu treinador e, posteriormente, de Billy. Hoppy também atua como catalisador da trajetória de Billy, mas diferentemente de Tick e Maureen, mal é um personagem. Não tem voz, personalidade, backstory, nada. Morre no início do terceiro ato, numa tentativa frívola do roteiro de investir ainda mais emoção ao filme, e o resultado passa muito longe do pretendido. E há, finalmente, a filha de Billy Hope, Leila (Oona Laurence), uma garota que desponta como se tivesse própria voz dentro da história, mas cena após cena é engolida pela massa monstruosa que constitui os dispositivos narrativos de Nocaute, culminando em mais uma personagem com a função de extrema subserviência à Billy Hope.

Embora eu encare isso como falha, não pretendo dizer que Nocaute falha nesse aspecto sozinho. Usar personagens coadjuvantes como ferramentas narrativas/de emoção para serem utilizadas em prol do protagonista é uma prática comum no cinema americano e europeu. Entendo que isso pode não incomodar muitas pessoas. O meu posicionamento, no entanto, é que em termos narrativos, esse é um dispositivo empobrecedor, portanto encaro, pessoalmente, como algo negativo.

Acaso o filme não mostrasse tão claramente em tratar suas personagens periféricas como pebolim do protagonista, eu poderia argumentar que o tratamento dado a Maureen foi excelente. Embora existam os problemas supracitados, a mulher se conserva viva na história, ainda que espiritualmente, muito graças a a) a maneira como Billy Hope encontra-se totalmente despreparado para executar as funções mais básicas de um ser humano, como por exemplo falar ou se mexer de maneira que não o faça parecer completamente maluco, sem a companhia da esposa e b) principalmente em razão da FANTÁSTICA atuação de Rachel McAdams, que totalmente rouba o filme nos poucos minutos que sua personagem pode aparecer nele.

A atuação de McAdams vai além da própria personagem, eu acredito. Nas mãos de uma outra atriz menos preparada ou menos ambiciosa, Maureen poderia existir como uma personagem apagada, transitória e submissa. McAdams dá uma contundente dignidade à esposa do boxeador, que na verdade nem é “a esposa do boxeador”, mas uma mulher completa, carregada de emoções complicadas e carregada principalmente de um espírito de decisão e de uma postura engrandecedora. E apenas uma das coisas que essa mulher é, é “esposa do boxeador”.

McAdams, porém, é obrigada a afastar-se antes dos trinta minutos do filme, mas o espectador não é deixado a sós. Nocaute conta ainda com uma atuação assombrosa de Jake Gyllenhaal na pele de um animal feroz autoflagelante. Gyllenhaal lembra bastante, me desculpem, de Niro em Touro Indomável. La Motta, porém, é um homem muito articulado se comparado a Billy Hope, no que Jake é obrigado a usar de gestos, tiques e contorções faciais para expressar as emoções que seu personagem não é capaz de verbalizar.

Uma outra referência clara e icônica que Fuqua parece evidenciar, é Rocky: Um Lutador (Rocky, 1976). O filme de Avildsen é modernista, tipicamente setentista, um pouco imundo, cadenciado, extremamente interessado em emoções e relacionamentos humanos (em contraste com filmes que se interessam mais por narrativa, por exemplo). Nocaute, por sua vez, é maneirista, repleto de teatralizações, onde a imagem opera um caráter de extrema relevância para a geração da emoção. Os dois filmes atuam bem segundo suas intenções e características mas um filme sobre um boxeador em busca de redenção, não tem jeito, precisa ter uma luta final.

Em Rocky, Stallone perde a luta, mas ganha a garota. O clímax é fantástico, claramente o maior filme de todos os tempos e etc. Gyllenhaal, por outro lado, não tem garota, apenas sua família, que parece interessada também apenas em ver seu pai ganhando a luta. E ele ganha. O clímax não é satisfatório. A luta não é bem filmada, nem enquanto cinema, nem enquanto esporte mesmo, o que seria decente de qualquer forma. A luta ocorre, a história acontece, e num piscar de olhos o filme acaba. Muito menos emocionante do que deveria ter sido; muito menos bom. Na memória, restarão apenas as fantásticas atuações de Gyllenhaal, McAdams e Whitaker a decepção pelo potencial narrativo desperdiçado.

Comentários (4)

Augusto Barbosa | terça-feira, 27 de Outubro de 2015 - 14:18

Esse texto aí é do Bakunin mesmo? 😲 'Tá com cara de ser do Spada - melhorado, verdade, mas ainda ele.

Augusto Barbosa | terça-feira, 27 de Outubro de 2015 - 21:39

Good for you.

Mas nem falei pela qualidade, e sim pelo estilo. Compara este aqui com a crítica a The Visit e com o texto para Sicario e veja com quem parece mais, rs.

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