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Críticas

Cineplayers

Uma alma, dois corações.

9,0
Durante a maior parte de O Grito (Il Grido, 1957), um personagem vaga sem rumo por estradas na Itália, na companhia de sua filha pequena, após ser abandonado pela mulher que ama, procurando se reencontrar depois de uma grande desilusão. O envolvimento com outras mulheres e a descoberta de novos lugares e espaços não preenchem o vazio que ele sente dentro de si, e só lhe resta continuar, incompleto e sozinho. Desde que dirigiu esse filme, Michelangelo Antonioni começou a formar a identidade de seu cinema, preenchido por tipos solitários, insatisfeitos, frustrados, procurando por algum amparo em jornadas existenciais mundo afora. O ápice dessa fase veio com a aclamada Trilogia da Incomunicabilidade, composta por A Aventura (L’Avventura, 1960), A Noite (La Notte, 1961) e O Eclipse (L’Eclisse, 1962), estendida também por O Deserto Vermelho (Il Deserto Rosso, 1964).

Em cada um dos filmes ele trabalhou esses temas em alguma esfera diferente do convívio social, desde as relações familiares até o ambiente de trabalho. No caso de A Noite, seu mais tocante trabalho, o foco recai sobre o casamento desgastado de Giovanni (Marcello Mastroianni) e Lidia (Jeanne Moreau). Muito influenciado e apaixonado por literatura, Antonioni sempre reclamou do imediatismo do cinema, ou do pouco tempo à sua disposição para se aprofundar nos dramas de seus personagens, como poderia fazer se estivesse escrevendo e tendo páginas e páginas a seu dispor. Por isso não há pressa em A Noite, apenas um olhar cada vez mais incisivo e ampliado sobre os conflitos do casal central. Ao decorrer de uma única noite, esses dramas passarão por um expurgo e a relação deles nunca mais será a mesma.

O drama de um casal em crise que se separa por um período de tempo para espairecer e repensar os rumos que a vida a dois tomou já ganhou representação em grandes filmes, como O Atalante (L’Atalante, 1934), Abismo de um Sonho (Lo Sceicco Bianco, 1952) e Viagem à Itália (Viaggio in Italia, 1954), mas aqui Antonioni abre mão do barroco de Jean Vigo e do onírico de Federico Fellini para despir qualquer possível romance e só expor o cru da relação de Giovanni e Lidia, se aproximando mais da abordagem de Rossellini. A fórmula está em primeiro trazer uma visão separada de cada um, uma análise deles enquanto indivíduos, antes de adentrar na vida a dois.

Por isso, a princípio nota-se um clima frio, mas somente durante a tal noite em uma festa numa mansão burguesa que notaremos o abismo que realmente existe entre os dois, uma relação que se perdeu em algum ponto onde nenhum dos dois consegue mais voltar. Como sempre, Antonioni analisa a influência do ambiente sobre o indivíduo, por isso a opção por muitos planos-sequência que acompanham a jornada de Lídia e Giovanni noite adentro, conhecendo outras pessoas, se distraindo em convenções banais, e se emaranhando num cenário cada vez mais dominante, sumindo e finalmente sendo assimilados como parte daquele quadro de pessoas comuns, fúteis, já perdidas e sequer conscientes disso.

A mise-en-scène de Antonioni trabalha com a ruptura do formalismo narrativo e estético já desgastado pelo cinema comercial, não abrindo concessões para tornar o filme mais digerível pelo público e, justamente por isso, abusando de tempos mortos, abordagens minimalistas e poucos estouros dramáticos. Não deixa de ser um reflexo do descontentamento pessoal dele diante de uma época de muitas utopias politicas, sociais, maquiadas com otimismo e fantasia pelo cinema tradicional – um sentimento de deslocamento que mantinha em si, tendo sido criado em meio à sociedade burguesa de classe média alta italiana, e que se reflete em seus personagens. É um cinema moderno, porém difícil, pois trilha um caminho muito subjetivo de provocação e criação de expectativas no espectador, sem que necessariamente traga respostas e soluções explícitas, mas ao mesmo tempo oferece uma visão muito ampla sobre os temas que aborda.

No caso de A Noite, esse estilo mais seco é usado em função de uma análise brutal e triste sobre um casal fragilizado pela vida moderna, que sem se aperceber deixou que a indiferença, os ruídos na comunicação, a rotina e as distrações alheias maculassem gradativamente o companheirismo. Mas a grande questão é que, apesar de tudo isso, o amor ainda existe entre eles e acaba por se transformar no maior dos problemas. Giovanni e Lidia, ao mesmo tempo em que não conseguem mais continuar, são ligados demais, próximos demais, íntimos demais, a tal ponto que já não se enxergam mais como indivíduos, mas como partes indissociáveis de um único ser. Na belíssima sequência final, quando já expurgaram todas as insatisfações e frustrações pessoais, Lidia lê uma carta escrita há anos por Giovanni, e ele já não se recorda mais como o autor da escrita, e então os dois finalmente estouram, chegam à catarse depois de um filme todo de contenções de mágoas. De partir o coração, percebem que ainda se amam, e que amar foi a maior salvação e também a pior ruína para os dois.

“– (...) Preferia tê-la assim como algo que ninguém tiraria de mim, pois só eu a possuía. Uma imagem sua para sempre. Além do seu rosto, via algo mais puro e mais profundo onde eu me refletia. Eu via você numa dimensão que englobava todo o tempo da minha vida. Todos os anos futuros e os que vivi antes de conhecê-la, mas já pronto para encontrá-la. Este era o pequeno milagre de um despertar. Sentir pela primeira vez que você me pertencia não só naquele momento, e que a noite era eterna ao seu lado. No calor do seu sangue, dos seus pensamentos e da sua vontade, que se confundia com a minha. Por um momento, entendi o quanto a amava, Lidia, e foi uma sensação tão intensa que meus olhos se encheram de lágrimas. Eu pensava que isso jamais deveria ser como esse despertar. Senti-la não minha… mas uma parte de mim. Uma coisa que respira comigo e que nada pode destruir, a não ser a indiferença de um hábito que considero a única ameaça. Então, você acordou e, sorrindo, ainda adormecida, me beijou, e eu senti que não havia nada a temer. Que seríamos sempre como aquele momento, unidos por algo que é mais forte que o tempo e o hábito.”

– De quem é essa carta?

– É sua.

Comentários (3)

Augusto Cesar | domingo, 17 de Janeiro de 2016 - 23:28

esse é dos 10 maiores de todos

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