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Críticas

Cineplayers

Sangra enquanto espero.

8,0
Agora que as bases das experimentações de gênero voltaram a se estabelecer no cinema atual inclusive fora dos EUA, as novas produções parecem mais preocupadas em avançar nas discussões e olhar de maneira diferente para subgêneros do fantástico, afim de criar roupagens não apenas modernas, mas diferenciadas para os cânones, e as chamadas 'vacas sagradas' começam a receber olhares dispostos a ressignificar cada uma delas. Filmes do mundo todo têm feito essa tarefa não-obrigatória de reler muitos signos - e que inclusive permite que o 'estabelecido' e o 'padrão' também se reafirme - e a França já há alguns anos tem retrabalhado novas formas de lidar com o cinema popular fantástico, com resultados impressionantes e reconhecimento mundial.

O filme de zumbi vem sendo uma frequente, com direito até a série de TV própria. Mas se já tivemos Extermínio e até o fenômeno Guerra Mundial Z, chegou a vez do cinema francês ser extremamente francês com um tema onde isso teria cabimento. E se dormíssemos durante uma epidemia zumbi? E se quando acordássemos tudo já tivesse acontecido e só nos restasse esperar e nos proteger escondidos? Isso acontece com o protagonista de A Noite Devorou o Mundo, longa de Dominique Rocher adaptado de um livro de Martin Page. O filme capta esse protagonista no meio de uma festa onde foi tentar reaver umas fitas (e a situação pela metade o aproxima do primeiro Cloverfield) e deixa pro espectador a investigação sobre aquele mal estar que existe entre ele e a anfitriã. Depois de beber muito, ele adormece num quarto. E ao acordar... bem, o título do longa se faz. Sozinho num prédio já abandonado, ele precisa esperar.

O filme é sobre esse processo. O que fazer quando o mundo "acabou" e somos o único sobrevivente? Um filme francês, literalmente. O ótimo Anders Danielsen Lie dá feições a esse personagem tão complicado, que ora está procurando comida por apartamentos vazios, ora interage com um zumbi preso no elevador em participação de Denis Lavant, ora se diverte atirando com um paintball nos monstros na rua (alô, Romero!), mas essencialmente espera. O tempo passa e pouco muda aquela realidade, até a chegada de outra sobrevivente. E a condução da trama a partir daí passa pela realidade que precisa ser encarada. E o filme tenta confrontar a sociedade atual como todo bom exemplar do gênero desde os primórdios da criação, os monstros da tela nada mais são do que reflexos dos que habitam o mundo real.

E a apatia do hoje parece ser o mote das flechas lançadas pela produção. A falta de perspectiva da juventude moderna e a ausência de rumo que contaminou a todos são as leituras possíveis desse longa que pode encontrar resistência não pela sua origem europeia, mas pelo caráter menos ágil do todo - embora o filme tenha ritmo, não é o mesmo que uma típica produção hollywoodiana possui, ou que seus consumidores desejam. Não deixa de ser uma oportunidade para o circuito abraçar propostas fora do senso comum e uma oportunidade rara de conferir um produto de gênero fora do circuito americano, que apesar de estar em dia com as tendências de mercado, dificilmente conseguem entrada na nossa grade de programação viciada.

O filme tem um belo trabalho de montagem e maquiagem, nada exagerado mas incisivo quando precisa ser. Mas talvez seja a direção de arte muito complexa o aspecto mais louvável da produção, tecnicamente falando. A cartilha do gênero geralmente está atenta a essa característica, mas aqui a proposta do filme era mais específica. Um prédio abandonado depois de um ataque terrorista, essa é a aparência dos espaços por onde o protagonista anda. O pouco visto de exterior também tem um aspecto comum a uma guerra civil, e provavelmente essa foi uma escolha da direção. Reverberando mais uma vez capítulos da sociedade atual, Rocher não faz nada mais do que o habitual em transpor a realidade na fantasia. Mas com competência e sensibilidade diferenciadas, promove um espetáculo sobre a reflexão durante o horror.

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