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Noites Paraguayas

(Noites Paraguayas, 1982)
8,7
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Críticas

Cineplayers

Noites sem dono

9,5

Há 40 anos atrás, Aloysio Raulino colocava nas telas um sonho. Reconhecido e requisitado diretor de fotografia, depois de quase duas décadas experimentando em direção de curtas-metragens, lançava mão de uma peça única do nosso cinema. Noites Paraguayas (Noites Paraguayas, 1982) é uma obra que pretende enxergar o Brasil – mesmo com todas as suas contradições já bem desenvolvidas no Cinema Novo – como uma possibilidade de esperança, não necessariamente ao brasileiro, mas sim ao vizinho paraguaio.

Nelson Pereira dos Santos, já nos anos 60, utilizava-se de Graciliano Ramos em Vidas Secas (Vidas Secas, 1963), para narrar a miséria que se passava no Nordeste, famílias como a de Fabiano, retiravam-se de tempos em tempos para fugir da seca. A situação é tão tenebrosa que escapar de vez daquele espaço geográfico, e procurar uma vida melhor nas grandes cidades não parece ser um plano tão mirabolante, ainda que o destino de boa parte dos retirantes esteja coberto de preconceito, violência, e muita fome. Raulino já nos seus primeiros filmes, mostrava-se interessado por esse movimento, a fuga da miséria, suas causas e consequências, como bem vemos em seus filmes iniciais, especialmente Jardim Nova Bahia (Jardim Nova Bahia, 1971).

Apesar dessa já demonstrada semelhança de interesses com um dos temas mais presentes nos primeiros anos do Cinema Novo, Raulino, como bom observador de seu tempo, e de sua cidade, foi além. Enxerga o crescimento da imigração hispanoamericana nas calçadas da Santa Efigênia, mais especificamente, entre a Rua Triunfo e a Vitória, lá na Boca do Lixo, onde dois anos antes já havia dirigido a fotografia do também retirante O homem que virou suco (O homem que virou suco, 1981). Não é difícil perceber as influências e os caminhos percorridos até esse primeiro longa, entretanto, não estamos falando simplesmente de uma linha cruzada entre Cinema Novo e Cinema Marginal, ou uma cópia paraguaia do drama nordestino. Noites Paraguayas (1982) é um cinema de imersão total sobre uma outra cultura, e o posterior encontro do espectador com o mergulhador na superfície dos 90 minutos da obra.

Ao dar início narrativo no Paraguai, construir o seu protagonista no interior do país, com sua família, esposa, e inclusive ter o guarani como língua principal de diálogo, somos apresentados a um vizinho de continente, que apesar da proximidade, parece que nunca foi visto. A partir da viagem, primeiro à Assunção e depois a São Paulo, fica evidente que não vamos conhecer Rosendo como um estrangeiro, mas sim vivenciar a experiência de um olhar estrangeiro sobre a nossa maior metrópole.

Ainda que presenciemos o absurdo narrativo, como o baile do patriota brasileiro em pleno epicentro de Assunção, ou ainda na famosa cena de José Dumont em duelo mental com o diabo; o travelling de Raulino é dono de uma rudeza realista, que já desenhava suas experimentações anteriores. Desenvolve uma puesta em escena que sempre pretende ampliar o horizonte, fotografa seus personagens em suas micronarrativas, com uma mão abraçada ao documentário que parece dar conta de tudo. A viagem não é apenas de Rosendo, mas da própria câmera, e por consequência, leva na bagagem o espectador

Nas cenas citadas, por exemplo, o foco está na ação, mas há muito por trás, e é justamente esse movimento de entrada e saída do plano, que constitui a essência estética do filme. Há sempre camadas e camadas na obra de Raulino, ainda que seja escolhida apenas uma história, é importante entender que esta só existe porque está relacionada com o ambiente inserido, tal e qual a linda sequência do homem que requebra as cadeiras ao som de “Amante Latino” de Sidney Magal em O Porto de Santos (O Porto de Santos, 1978) só faz sentido inserida naquele contexto, ao lado de um vira-lata, rodeado de transeuntes, vizinho ao porto mais rico da América Latina, mas tão descoberto de vestes como todo o seu bairro, uma metáfora de um continente desigual no corpo de um bailarino ordinário.

A poética do real montada em Noites Paraguayas (1982), conta com um sabor onírico- especialmente registrado nas cores- capazes de criar um sentido de possibilidades abertas ao espectador. O trabalho de iluminação somado à coloração dos negativos simulam os olhos maravilhados do imigrante estrangeiro no seu primeiro dia em sua nova casa, sensação estética potencializada com maestria no plano-sequência de chegada de Rosendo e seu amigo no centro da hiper povoada capital paulista, e o desenho de câmera projeta-os como se estivessem sendo carregados pelo povo numa carreata da vitória, ironicamente composta por gritos ao político Maluf.  

Ainda que coberto de fabulações, há sempre uma mão documental forte – marca registrada de toda a sua carreira, seja como fotógrafo, ou como diretor – o estilo de Raulino em seu primeiro longa-metragem exprime-se num realismo imagético visto, por exemplo, nos momentos fundadores do que seria o neo-realismo de Rossellini; vide a sequência clássica do episódio de Paisà (Paisà, 1946), quando, sentados em escombros de guerra, um soldado americano negro reconstrói sua experiência num avião a um menino italiano.

A hibridez do realizador monta uma simbiose musical entre Choppin e Pixinguinha, a passar por Moraes Moreira e Odair José, todos sempre cobertos pelo balançar da hamaca ritmada pela guaracha paraguaya. Esse movimento estético proposto pela obra permite ao espectador internalizar alguns elementos da cultura paraguaia, e se não partilhar, mas pelo menos compreender a dor migracional e suas incertezas vivas, não por uma guerra distante ao olhar brasileiro como vemos no cinema italiano já citado, ou ainda com os imigrantes japoneses em Gaijin- Os Caminhos da Liberdade (Gaijin- Os Caminhos da Liberdade, 1980), mas sim por um conflito onde o Brasil foi protagonista, ou melhor antagonista.

A violência visual causada a um paraguaio ao caminhar pela cidade, e observar referências de cunho heroico sobre a morte de seus parentes próximos causa um efeito devastador que somente as nossas aulas de história na escola podem ser capazes de mitificar. Se o Paraguai é constantemente lembrado de maneira pejorativa, e se o Brasil é uma referência distante de primeiro mundo aos nossos vizinhos é muito por culpa da devastação causada por Duque de Caxias e sua trupe na Guerra contra la Tiple Alianza.   

A obra triunfa em desmitificar esse ideal hipócrita de “fronteira da amizade”, com um dos primeiros exemplares do que é dito hoje como “cinema de fronteira”. O mergulho proposto por Raulino tem em suas lentes um realismo que também parece estar à margem do cinema brasileiro. Ao trazer, em plenos anos 80, ao turbilhão das ferozes noites de São Paulo, o olhar paraguaio sobre a nossa realidade, escancara a nossa cegueira pela falácia de um país sem preconceitos e naturalmente pacífico, e abre a fronteira narrativa para um cinema mais plural, experimental e descategorizado.

Noites Paraguaias vai da vertigem ao sul do nosso continente até o epicentro do umbigo do mais espalhafatoso dos patriotas. É a quebra da parede entre documentário sempre como realidade, e ficção sempre como mentira, Aloysio Raulino deixa-nos em créditos finais, as cordas da guaracha que cantam para uma noite sem nenhum dono, ou que deem a possibilidade de vários donos, não aquela mesma e única história.

 

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