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Críticas

Cineplayers

Precioso em detalhes e dono de personagens encantadores. Gratificante!

9,0

São muitos os elementos necessários para a construção de um filme. São muitas as peças a se encaixar e só do equilíbrio dessas nascem os filmes primorosos, mágicos. É nessa alquimia ideal que surge o feitiço escapista do cinema, a maravilha de se poder viajar, por alguns instantes, para longe da realidade cotidiana, talvez até para longe da condição humana. Nesse sentido, o resultado de “A Noiva Cadáver” não poderia ter sido mais feliz. Tim Burton comanda um trabalho impecável, aliando a excepcionalidade da técnica à sensibilidade do texto e tornando seus minutos de projeção repletos de sentimento, encanto e diversão capazes de arrancar qualquer um do turbilhão a sua volta.

Baseada em um conto russo, “A Noiva Cadáver” traz a história de Victor, filho de um casal de “novos ricos” que é obrigado a casar-se com Victoria, filha de aristocratas. Nesse jogo de interesses, em que uns buscam dinheiro e outros um nome, é marcado o casamento sem que os noivos se conheçam e, pela própria inadequação de ambos ao frígido mundo que os rodeia, eles se apaixonam em seu primeiro encontro durante o ensaio para a cerimônia. Porém, a timidez e o atabalhoamento de Victor impedem que ele consiga decorar seus votos e, de quebra, o faz causar um enorme estardalhaço durante o ensaio. Transtornado, ele foge para a floresta e começa a declamar os votos, só que sem perceber, durante uma dessas declamações ele toma por esposa o cadáver de uma moça enterrada ali. Em tom de fábula e musical, o filme se divide em passagens ora sombrias e contidas (referentes ao mundo dos vivos), ora coloridas e agitadas (quando os mortos entram em cena). A história coube como uma luva à cartilha de Burton, composta de figuras incompreendidas e deslocadas de seu meio (vide Edward - Mãos-de-Tesoura, Ed Wood...), bem como lhe deu a chance de exercitar paixões como a animação, o humor negro e a crítica à valores hipócritas impostos pela sociedade. Era difícil ter dado errado essa receita, pois todos os ingredientes que Burton gosta e sabe manusear estavam presentes.

Com um roteiro enxuto e bem executado, Tim teve a base imprescindível sem a qual sua grande inventividade seria incapaz de fluir corretamente. O texto desenvolve-se dinamicamente com recursos inteligentes na apresentação das personagens (diálogos bem acabados, musicais ou simples gestos) e com a sucessão dos atos rápida sem ser atropelada, sempre atento ao nonsense e à delicadeza que a obra pede. Feito isso, o restante foi preenchido pela técnica, pelo trabalho artístico e pela direção precisa.

É bom ver que em plena era da digitalização ainda sobrevivem artistas que se dedicam a empreitadas tão manuais e meticulosas quanto a do stop-motion. A película é gerada através de fotografias quadro a quadro de bonecos de “massinha” remoldados a todo instante para que se capturem as ações e emoções das personagens, e a precisão do roteiro pode ser atribuída em parte a essa árdua fatura do stop-motion. A técnica utilizada não costuma dizer muito sobre um filme, mas nesse caso ela se encaixou tão bem à proposta que é impossível não atribuí-la parte do êxito de “A Noiva Cadáver”. As imagens carregam um quê extra de fascínio vindo do trabalho exaustivo dos artistas que se debruçaram sobre elas e dão ao texto a sua correspondência exata na tela. Do perfil anguloso de Victor às formas roliças de algumas personagens, passando pelas variações cromáticas que acompanham os atos, toda a concepção de arte de “A Noiva Cadáver” conflui para uma atmosfera coerente e única. É o equilíbrio das peças!

“A Noiva Cadáver” traz ainda algo raro de se encontrar: a marca legítima de um cineasta. O filme é e só poderia ser de Tim Burton. Não sei exatamente em que ponto surge essa identidade, mas o fato é que ela existe. São próprios dele o tratamento dado à animação (reparem os closes, as mudanças de câmera próprios de um filme feito com atores), a inserção de pitadas de humor negro (inteligentes e divertidas elas acrescentam leveza e fluidez), a trilha sonora arrojada (o compositor Danny Elfmann é também um dos tiros certeiros de Burton), a performance delicada dos atores. Mesmo dividindo a direção com Mike Johnson, o processo de conceituação e de modelagem do filme foi todo preenchido por Tim. Admiro muito também a sua capacidade, em evidência aqui, de lidar com elementos díspares fazendo-os tornar-se próximos. A aura gótica se mistura com passagens de jazz, a morte convive com a vida e a alegria, a escuridão se transpõe em uma variada paleta de cores. A própria noiva cadáver é emblemática dessa capacidade: uma figura bizarra, deformada pela decomposição mas que chega ao espectador como um ser angelical e apaixonante.

Mais que um trabalho bem executado esquematicamente falando, “A Noiva Cadáver” é um filme precioso nos detalhes, um filme de personagens encantadores concebido para ser tocante. Pode-se dizer que a passagem do cinzento mundo dos vivos para o colorido mundo dos mortos mostrada no filme é análoga à passagem do maçante cotidiano para um mundo singelo e divertido vivenciada por quem assiste ao filme.

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