Saltar para o conteúdo

Críticas

Cineplayers

Os múltiplos lados de um discurso.

7,5
Não foi em 2018 que a temática racial ganhou força (ou mais força) na cinematografia mundial. Enquanto no Brasil cineastas como André Novais Oliveira buscam a conciliação pelo afeto, através da normatização de atividades e narrativas, nos EUA segue a igualmente acertada política do choque pelo impacto. Filmes como Ponto Cego, Infiltrado na Klan e Sorry to Bother You investem suas fichas no confronto direto entre imagem e palavra, o discurso como forma de embate. Já George Tillman Jr. parte da adaptação de um best-seller da categoria 'young adult' (livros destinados ao público entre os 15 e 25 anos, geralmente com personagens na mesma faixa etária) com mais substância do que esse segmento geralmente tem. Isso poderia indicar uma visão simplista sobre o tema, mas O Ódio que Você Semeia tem raízes bem amplas, sem superficialidade.

Na verdade a adaptação cinematográfica funcionaria como o próprio filme se vende já na abertura, com uma inesperada lição de pai para filhos, a respeito de fazer valer seus direitos independente do racismo. É forte e pode parecer deslocada para quem não cresceu na realidade mostrada pelo filme, mas tem de fato um caráter doutrinador nessa sequência, que se justifica ao longo de sua duração. As múltiplas vias de discussão que o filme abre não se esgotam com seu término e abre um canal de comunicação já dentro da própria obra; o racismo estrutural é uma realidade e precisa ser debatida, e combatida. Dentro dessa afirmação, o roteiro delineia sua trama para a entrada e saída da exposição desses temas, na maioria das vezes de forma orgânica.

Estrella/Starr é uma bela personagem, que passa por um processo de crescimento emocional e psicológico muito intenso no processo narrativo. É uma adolescente com os próprios conflitos da idade, e também é um ser que optou por bifurcar sua existência ao ser matriculada num colégio de elite majoritariamente branco em um bairro vizinho ao seu, submerso na violência. Sua persona escolar acessível, sem características combativas e uma postura assumidamente dócil, a transformou em uma 'negra confortável', palavras de sua melhor amiga branca que batem no seu ouvido em determinado momento como uma bomba que ela mesma construiu. Isso tudo acontece após Starr ver seu melhor amigo ser assassinado por um policial na sua frente, desencadeando uma série de eventos que a colocarão em cheque com suas escolhas com a família, com os amigos, com o namorado branco, e principalmente consigo mesma.

Parece uma sinopse boba e rasa acima mas a verdade é que O Ódio que Você Semeia abre sua discussão para muitos lados mesmo. O exemplo de seus pais, um homem que sobreviveu ao mundo do crime e se casou com uma mulher (que ele traiu!) o seu oposto - ele ainda um combatente do sistema racial opressor que os emudece, ela uma guerreira da paz e do diálogo, ambos em infinitas contradições que se unem no amor que compartilham e que distribuem a seus filhos. A melhor amiga da escola de Starr é outro ponto de discussão, uma típica menina branca que não se vê racista mas que foi institucionalizada dentro do sistema que a educou como tal. Essas questões (e mais o universo criminal que norteia a trama, a progressão da violência pelos anos, e tantos outros) podem até não ser debatidas em sua totalidade, mas criam um painel rico das inúmeras ramificações possíveis dentro daquele universo.

Sem jamais pretender o rigor cênico de Spike Lee, Tillman Jr. sabe que tem em mãos uma discussão para abarcar, e sabiamente ele escalou um elenco para credibilizar seu olhar e humanizar essas figuras. A jovem Amandla Steenberg é daqueles casos raros onde tudo deu certo, um encontro de forças. Potente e sensível, ela encara um empoderamento feminino e racial com a tranquilidade de quem enfrenta essa realidade dia a dia. Seus pais são vividos por Regina Hall (que está em ano especial da carreira, aqui e sendo premiada por Support the Girls) e Russell Hornsby, um furacão em cena, uma espécie de Mahershala Ali em Moonlight versão 3.0, um dos personagens mais interessantes de 2018 e mais da metade dessa ebulição vem de seu talento impressionante. O grupo de coadjuvantes (que incluem Common e Anthony Mackie) e passam por diversos adolescentes é inteiramente acertado, uma prova de que, independente do ar rarefeito que se forma a bordo de seu discurso as vezes resvalar no clichê e na 'pregação para convertidos', a consciência de seu alcance se entendia no poder de suas palavras e no talento de quem as pronunciaria. O filme sabe disso e prepara o terreno para difundir sua urgência.

Comentários (0)

Faça login para comentar.