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Críticas

Cineplayers

A busca pela beleza através de terror magnífico e sofisticado.

8,0

Um famoso cirurgião, após desfigurar a filha num acidente de carro, lança-se no desenvolvimento de uma nova forma de transplante facial a partir de uma doadora viva, fato que o levava a matar suas pacientes para roubar-lhe os rostos. A técnica funcionou na sua assistente (interpretada pela italiana Alida Valli), mas o corpo da filha rejeita sucessivamente os novos rostos implantados, causando uma série infindável de crimes que logo chama a atenção da polícia, dando início às investigações. Para não levantar pistas, o médico forja a morte da filha.

É um filme de terror, mas nunca ninguém filmou com tanta elegância o desespero do pai assassino consumido pelo remorso e pela culpa. Estamos na França mítica do início dos anos 60, o diretor é Georges Franju e o filme, um clássico, chama-se Os Olhos sem Rosto (Les Yeux sans Visage, 1959), disponível em impecável DVD por meio da prestigiosa The Criterion Collection, o selo nova-iorquino que lança em DVD o supra-sumo do cinema internacional.

Nenhum diretor, nem Mario Bava, nem Dario Argento, ou qualquer outro do gênero terror, chegou ao nível de sofisticação de Franju, que foi homenageado no Brasil esse ano numa retrospectiva com praticamente todos os seus filmes em São Paulo. Seus planos impecáveis, os diálogos enxutos, o brilhante uso da fotografia em preto-e-branco e um senso de narrativo clássico, filosófico, elevaram o gênero terror ao seu máximo quando ele acertava, como este impressionante Les Yeux sans Visage. A angústia das personagens e seus atos desesperados são ao mesmo tempo motivo de identificação por parte do público e deleite no seu fim punitivo e implacável.

A assistente, tentando atrair as futuras vítimas para a vila do médico, age como a mais envolvente e chique das lésbicas. As mortes são feitas pelo doutor com toda a finesse, “noblesse oblige”, são filmadas de maneira seca e sem sensacionalismo pelo diretor, que se supera mesmo na hora da cirurgia, em que o cirurgião, suando em bicas e tremendo, arrancava o rosto das vítimas em cenas horripilantes e sensacionais, para o delírio dos fãs do gênero – e, creio, até dos não adeptos.

Enquanto isso, a filha vaga como um fantasma com sua máscara temível pela interminável casa, que teve todos os espelhos removidos. Só vemos sua deformação uma vez, quando ela se mostra para uma das “doadoras”. Como o pai testava suas fórmulas primeiro em cachorros, isso o obrigava a ter centenas deles no subsolo da casa. O latido infernal da cachorrada, onipresente em toda a duração da fita, é uma dos mais torturantes estratagemas que um diretor já criou para atazanar a vida de seus espectadores.

Doutor e assistente vão ficando cada vez mais relapsos com as mortes, deixando um rastro de pistas, que logo a polícia decifra. Mas o interesse do diretor não é no desenvolvimento da parte policial da estória, mas da agonia interna de suas personagens tão dilaceradas como a carne das jovens loiras desfiguradas. Tudo isso embalado pela extraordinária trilha sonora do compositor francês Maurice Jarre, um dos grandes do cinema, que mais tarde ficaria famoso pelo Tema de Lara, do filme Doutor Jivago (ele foi indicado seis vezes ao Oscar, a última por Ghost - Do Outro Lado da Vida, e venceu em outras três vezes, todos por filmes de David Lean: Passagem para a Índia, Lawrence da Arábia e o citado Doutor Jivago).

O curioso é que a prática foi finalmente desenvolvida e testada esse ano – a primeira mulher transplantada passa bem com o novo rosto (que, evidentemente, veio de uma paciente morta de causas naturais). O filme, portanto, acabou por antecipar o futuro, fato que só acrescenta a essa obra embebida em melancolia mais uma camada de significação, a discussão sobre a beleza. Afinal, Christiane, a filha, aprisionada na casa, sofre a perda do noivo, sua falta de liberdade, o latido dos cães, o entra-e-sai de vítimas, tudo em nome de sua beleza reconstituída. Com a máscara, parece uma boneca sinistra, mas aos poucos vamos percebendo que ela não está alheia a toda aquela sordidez – que levará o filme a seu final metafísico e de uma beleza, essa sim, real e igualmente mortífera.

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