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Ontem Havia Coisas Estranhas no Céu

(Ontem Havia Coisas Estranhas no Céu, 2019)
7,0
Média
10 votos
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Sua nota

Críticas

Cineplayers

A cerimônia do adeus (ou 'Nós não podemos ir pra casa de novo')

9,5

É certamente desconfortável se expor em tela grande para o mundo, mas de uns tempos pra cá o documentário em primeira pessoa tem sido cada vez mais frequente, com resultados disparatados em qualidade. Bruno Risas persegue não apenas o desconforto da situação em si, mas também trata de criar armadilhas particulares que não somente o pressionam mais, como também vai perdendo espectadores pelo caminho ao escolher essa abordagem de risco onde a cada novo segmento uma nova faceta narrativa é desconstruída pra dar lugar a algo inesperado.

O filme nos pega pelo pé tanto quanto vai se apresentando, com tantas possibilidades de leituras, texturas, aprofundamentos, nos deixando positivamente confundidos; pra onde Risas quer nos levar? Sua família é o núcleo, mas em meio ao caos instaurado de decepção mútua, algo nasce ali. Através dos olhos vagos da avó, o cerne da questão se apresenta então, pra se ampliar no horizonte estelar pra onde mira a mãe: trata-se da mais inusitada cerimônia do adeus já filmada, pois desejada por todos.

Há um movimento de repelir crescente por parte dos seus membros, que parecem viver uma realidade não-querida por todos em cena. O diretor no off inicial já adianta que tudo os assolou nos últimos tempos, então não há necessariamente surpresa ao encontrá-los com intenso desprazer em suas relações mútuas. Mas, como dito, o filme não se encerra em seu rancor - tem subtextos que vão aprofundando o tratamento que a direção dá àqueles membros, que se metamorfoseiam através do olhar de seu filho.

São inter-relações cuja complexidade criam a teia do filme, e engrandecem a narrativa. Pais e filho, atores e diretor, não apenas interpretando, mas quebrando a formalidade que se espera das relações pra sublinhar a ficção - inclusive a científica. Porque Viviane, de tão exasperada com sua realidade, vive a possibilidade de uma fuga a qualquer momento, e busca literalmente um chamado para uma outra vida, que não seja a sua... Ou que transforme a sua.

Então, a ficção da realidade (ou o documentário de mentira) começa a ampliar suas texturas - e ainda que o filme já tivesse sido claro em suas intenções (in)formais, como na leitura do roteiro por Viviane, duas cenas adiante fincam uma bandeira na ficção propriamente dita: a discussão entre mãe e filho que gera uma catarse e posterior enraizamento da mesma, exatamente como o filho queria, que borra as ênfases cênicas do filme; e a chegada em casa também de Viviane, quando o filme pela primeira vez "escolhe ser um filme", com movimentação de câmera, fotografia azulada, trilha sonora que irrompe, e teatralização dos protagonistas, em mise-en-scène e postura corporal dos atores.

Porém, o dispositivo de leitura se dá com a entrada em cena de Flora Dias, fotógrafa transformada em atriz, em perpetuação imagética como se fora uma musa a representar os temas e conflitos que estão nas entrelinhas de Ontem Havia Coisas Estranhas no Céu; a ânsia por mudança, a necessidade hercúlea de uma nova perspectiva vem da partida, mas que Flora representa com a presença. Não estar mais e aí então se fazer presente, finalmente; fotografar a si, e então, ir.

Tudo igual sem ela. Tudo igual com ela. Se a ausência não faz diferença para a família de Risas e nada mudou, pra ele faz. Seu filme seria outro sem Flora ou Viviane, e eventualmente sua vida (que também é seu filme, e vice versa) será outra. Enquanto tiver a sua disposição a luz externa de quem partiu e a interna de quem retornou, as coisas estranhas no céu de Risas estarão cada qual em seus lugares certos, nessa mistura caótica absolutamente avassaladora que ele compôs e podemos chamar de cinema; outros, chamarão de vida. 

Crítica da cobertura da 23ª Mostra de Tiradentes

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