Saltar para o conteúdo

Críticas

Cineplayers

Um conflito de classes e de identidade são os motes do tocante drama do diretor japonês Hirokazu Koreeda

8,0

Dois casais descobrem, após seis anos, que seus filhos foram trocados na maternidade. Koreeda parte dessa sinopse e não parece ligar muito para as razões, mas olha atentamente para como essa notícia repercutirá nos pais das crianças, especialmente em Ryota, esposo de Midori, um homem de negócios extremamente bem sucedido, mas distante como pai e marido.

Recebi o foco do diretor em Ryota inicialmente como um ultraje: mais uma vez um filme me colocava diante de um drama particular de um sujeito rico, homem. Mas rapidamente percebi que a afeição de Koreeda não estava em colocar o abastado pai de família numa encruzilhada, incerto em qual de seus filhos ele de fato chamaria de seu. O filme circula muito mais na questão de reconhecer a presença-ausente de Ryota em relação à família, e em relação a ele mesmo.

É ainda reverberação de um conflito existencial masculino contemporâneo, onde a masculinidade perde o lugar de dominação privilegiada enquanto reage a um mundo supostamente cada vez mais igualitário. Certamente Pais e Filhos não trata exatamente disso, mas toca em certas questões a esse respeito ao escolher privilegiar a constituição da personalidade de Ryota em meio ao mote central (a troca de bebês) da história.

Entendemos que a relação entre Ryota e seu filho (não-biológico) Nobuko está abalada devido a alguns fatores, todos eles provenientes do pai, incapaz de conectar-se afetivamente com sua criança, estabelecendo então expectativas altas e rígidas em questão de comportamento e realização profissional. A dureza com que essas expectativas são expressas por Ryota faz com que seu filho se afaste ainda mais, colocando a mãe como ponte intransponível nessa relação, perdida entre o papel de amar o companheiro e o papel de defender seu filho a qualquer custo.

Há também a belíssima exploração de duas realidades distintas, expressas num contexto japonês, mas que coexistem em praticamente qualquer lugar do mundo. O outro casal, Yukari e Yudai, faz parte de uma classe social completamente distinta. Enquanto os Nonomiya (Ryota e Midori) pertencem a classe média alta, os Saiki são pobres, não miseráveis, mas consideravelmente mais modestos, embora trabalhadores.

A distinção social, para Koreeda, se reflete em vários aspectos. O lar dos Nonomiya é frio, impessoal, silencioso, em contrate com o lar dos Saiki, aconchegante, caloroso, barulhento. Estabelecer a classe social das famílias como constituintes de uma relação de afeto distinta é um ato provocativo do filme, que vai além e responsabiliza, em maior parte, Ryota como o responsável por essa formatação.

Pode muito bem ser que Ryota possa ser interpretado como uma metáfora para o homem bem sucedido japonês e, se for o caso, a ferida que Koreeda toca é profunda e incômoda. O Japão é uma nação de riquíssimos valores, mas que ainda persiste num processo doloroso de despersonalização, conforme se adapta cada vez mais a práticas do ocidente. E o papel masculino também é posto em cheque diante desse panorama.

Independente dessa interpretação mais ampliada, o charme principal de Pais e Filhos está na maneira como o drama é realizado, de maneira sussurrante e ponderada, sem tomar lados, esquivando-se de posicionamentos julgadores, não ambicionando dar solução a problemas impossíveis de serem solucionados. Acompanhar os casais se adaptarem à ideia de que seus filhos não são biológicos é quase tão interessante quanto acompanhar o rompimento de Ryota de sua ordem de mundo tradicional, os conflitos secundário e primário, respectivamente, da história. O final acontece com otimismo (e não pieguismo), abrindo espaço para que observemos a paisagem de uma região mais desfavorecida da cidade, com seus prédios baixos e casas apertadas, sugerindo mais uma vez que o filme, além de contar uma comovente história, propõe um estilo de vida à nação, menos focado em números e realizações, pautado pelo afeto e pela proximidade daqueles que são, por sangue ou não, nossos semelhantes.

Comentários (6)

Nilmar Souza | quarta-feira, 14 de Janeiro de 2015 - 16:35

Arranca lágrimas até de uma pedra. A sensibilidade do Koreeda já havia me chamado a atenção em Boneca Inflável, mas aqui chega a ser inacreditável. Obra-prima.

Nilmar Souza | quarta-feira, 14 de Janeiro de 2015 - 16:37

Só a cena da banheira ou a do garotô descobrindo que não irá mais voltar, já valeriam o filme.

Augusto Barbosa | quarta-feira, 14 de Janeiro de 2015 - 19:12

Só a cena da banheira ou a do garotô descobrindo que não irá mais voltar, já valeriam o filme.

Rapaz, quando o pai descobre as fotos na máquina lá perto do final, não tem quem se aguente, lindo demais.

Reginaldo Almeida | quarta-feira, 14 de Janeiro de 2015 - 22:53

O melhor filme de 2014. MARAVILHOSO!

Faça login para comentar.