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Críticas

Cineplayers

A lucidez de um cineasta.

8,5
O jornalista Johnny Barrett decide se internar em um hospital psiquiátrico a fim de solucionar um assassinato ocorrido no local. Acredita que se descobrir a identidade do assassino, não revelada pelas autoridades competentes, poderá publicar sua pesquisa e ter consideráveis chances de ganhar o prêmio Pullitzer. Seu plano é ambicioso. Tamanha ousadia tem preço. Quem matou Sloan? Tal pergunta assombrará durante todo o filme e as soluções serão dadas conforme Samuel Fuller gosta: com austeridade!

No cinema de Fuller, tudo parece ser proposto com intensidade. Os tabus se somam. De algum modo, não somos espectadores passivos da projeção, já que compartilhamos suas representações e nos incomodamos com cada uma delas. Desta forma, somos absorvidos pela atmosfera criada. É possível, também, que o espectador inquiete-se a ponto de se afastar do filme, pelas mesmas questões as quais lhe atraem. Nessa lógica, não é um cinema para se amar ou odiar. É o quanto se é capaz de suportá-lo.

Dizendo assim, é possível que você, leitor cinéfilo, que ainda não tenha assistido a nada do cineasta, se interesse em encará-lo. Em qualquer hipótese isso seria um desafio. Particularmente chamaria de conselho. Perceber o que Fuller propõe em seus consistentes projetos é permiti adentrar-se num cenário de críticas às quais este faz a tudo, no caso de Paixões que Alucinam, críticas ao país natal. Escrito e dirigido pelo próprio, o cineasta asila dentro de um manicômio as vergonhas da nação. Cada uma dessas está representada através dos discursos de alguns internos. Testemunhamos seus relatos, entre devaneios até o ponto de lucidez o qual seu entrevistador desconfia existir.

Os Estados Unidos pós-segunda guerra é deflagrado em três assuntos a partir dos relatos de cada personagem. O roteiro é rígido, não se entrega a excessos ou dramatizações que roubam seu objetivo de delação, exceto por algumas cenas extras de alucinações. Para encenar a loucura, Fuller reaproveitou cenas do ótimo Casa de Bambu e de Tigrero, sua obra inacabada filmada em Mato Grosso. São cenas destoantes do complexo emaranhado de entrevistas, justamente por representarem a insânia: elas são coloridas, ao contrário de todo o resto.

A nação sessentista está internada ainda sofrendo com as calamidades da guerra, do racismo e do ameaçador desenvolvimento nuclear. Ambos são representados a partir de diálogos brilhantemente construídos, desempenhado por 3 homens: Stuart que julga ser um oficial confederado; Trent, brilhante jovem negro autorizado a estudar, mas sucumbiu à ignorância crendo fazer parte da Ku Klux Klan; e Dr. Boden, absorvido pela sandice do armamento nuclear.

O rigor estético do diretor é claro. O que está em cena, na misé-en-scene, aparece como denúncia. Não há remanescências na imagem, há certa extravagância narrativa e um decurso para a história que é aplicadamente desdobrada. Repórter policial de formação, parece compreensível Samuel Fuller ser tão propenso às polêmicas, talvez até ao sensacionalismo presente em suas produções, enquanto atrativo ao público sedento por filmes corajosos e, sem dúvidas, controversos.

Aqui Fuller se expressa com sarcasmo, tomado pelo peso de seu texto e da tensão originada por situações extremas. O som vocal propagado por um tenor é um rompante que toma a atenção ao ruído. Não restringe-se a um simples momento, há repetições neuróticas no viés de sanidade onde o filme permite desequilibrar-se. Há também a cena a qual Johnny Barrett é violado por várias mulheres numa ala particular.  Poderia soar cômica ou compreendida como absurda, mas é real, um retrato de mais uma das violações a qual o escritor sofre preso na instituição.

Considerando chegar a todos esses temas, outro caminho é traçado pelo diretor. O que o roteiro propõe num primeiro ato é uma trama cuidadosamente engenhada por parte de seus personagens. De aparência noir, os planos revelam-se audaciosos demais a um desacreditado homem. A julgar por sua investida, têm-se um tour de force demarcado pelo desafio diante as atribulações de seus objetivos. Sobre o conservadorismo cultural, a desculpa para a internação não poderia ter um valor inferior aos assuntos argumentados, a desculpa diz respeito ao incesto. Um combinado com a namorada leva o jornalista à psiquiatria.

Os limites da sanidade são testados tempos depois devido a essa encenação. Quem suportaria as condições de tratamento em um manicômio na década de 60? Os três pacientes entrevistados aparecem como vítimas. Samuel Fuller reduz todo o contexto a gramas de sanidade para ir além da moral americana e gozar dela, pois sua obra nada mais é do que um estupor de escárnio, recheada de sarcasmos sobre o que esconde-se de baixo do tapete. A bem da verdade, Paixões que Alucinam é uma crônica filmada, irônica e articulada na ânsia de exprimir sem vergonha o que há de pior na sociedade americana, temerosa e carente de ser algo minimamente relevante. Assim é seu herói, Johnny Barrett. Um herói errado, sucumbido e preso ao custo violento cobrado pela pretensão.

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