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Críticas

Cineplayers

Um filme original, feericamente inventivo, adulto e exigente. Mais que uma curiosidade, Paprika é essencial e precisa ser visto.

8,0

Paprika é um desenho animado, mas definitivamente não para crianças: há um estupro no filme, duas cenas de nudez (uma delas frontal), alusões à masturbação, dois suicídios e referências à religião xintoísta japonesa. Além disso, tem uma trama intricada que se desenrola por meio dos códigos da psicanálise freudiana, seja os duplos, a figura do outro, o id e ego etc. Parece complicado, na verdade é mesmo, o que não tira o charme dessa produção inteligente e de criatividade assustadora, que não desperdiça película para contar sua densa e intrigante, alucinatória, viagem pelo universo dos sonhos manipulados.

A história é a seguinte: uma equipe de psicoterapeutas desenvolve um instrumento inovador que permite aos médicos gravar os sonhos dos pacientes e eventualmente fazer algumas intervenções. Só que três modelos são roubados e os ladrões passam a entrar nos sonhos de toda a população, manipulando-a de forma que ficção e realidade comecem a se confundir, com trágicas conseqüências. Uma doutora, o inventor e um detetive, também paciente e usuário do mecanismo, tentam descobrir quem teria surrupiado a máquina. Para isso, dormem e penetram no universo onírico viciado de Paprika.

A desagregação coletiva é representada por meio de uma caravana de animais, bichos e brinquedos que nunca pára de crescer, à medida que mais gente tem seus sonhos invadidos e roubados. Numa das cenas mais cruéis, alguns adolescentes masculinos transformam-se em celulares com câmera para fazer aquilo que é prática comum no Japão: fotografar debaixo da saia de suas colegas e depois distribuir as fotos na internet. Sim, o filme não perdoa e é pesado mesmo.

Paprika torna-se uma viagem psicodélica no labirinto dos sonhos cifrados dos personagens, que têm seus temores exacerbados nos sonhos. Com medo do conteúdo, os personagens fogem para os sonhos dos outros, onde são facilmente controlados e não têm como enfrentar aquilo que não lhes é habitual. Tornam-se presas fáceis. Há inclusive uma personagem enigmática, a tal Paprika do título, que está a serviço da invenção. Só pelo meio do filme os espectadores saberão quem é ela, mas Paprika já terá entrado na vida real e se tornado, ela mesmo, um ser passível de ter um duplo de si dentro do mundo dos sonhos. 

O diretor Kon Satoshi (nunca distribuído comercialmente no Brasil), considerado um gênio da animação japonesa, declarou que seu filme não é de sonhos, mas de pesadelos. Diz que os animes, muito comuns no Japão, são uma forma de escape da realidade, como o cinema, mas estão carregados de sexo e violência, assim como a produção cinematográfica atual, ou seja, os substitutos dos sonhos na chamada vida real estão sendo levados, como os sonhos maus, para o terreno do subconsciente perverso.

Em Paprika, o detetive tem seus pesadelos transformados em filmes de diversos gêneros (entre eles, um do próprio diretor, Tokyo Godfathers), como Tarzan e o romântico A Princesa e o Plebeu, com Paprika no lugar de Audrey Hepburn, e ele, claro, do fotógrafo William Holden. Em seus sonhos, seguem-se várias citações de filmes, como O Iluminado, de Stanley Kubrick, mas sempre ele chega no 17.° andar de um edifício imaginário, onde está um corpo flutuando: é ele mesmo, quando aos 17 anos tentou o suicídio – é por isso que fazia terapia e se sujeitou a usar o novo aparelho.

Satoshi narra de maneira hipnótica, sem concessões, diabolicamente imaginativo. Usa o desenho animado para derrubar as barreiras da lógica e da percepção por meio de uma montanha-russa de estímulos sensoriais e intelectuais. Nos melhores momentos, lembra os grandes artistas surrealistas. Mas não é sempre que o diretor acerta: a utilização excessiva da psicanálise por vezes soa superficial e apressada, talvez até mesmo gratuita, além do que os signos religiosos japoneses são desconhecidos da platéia ocidental, deixando algumas partes do filme incompreensíveis. A trama policial cheia de reviravoltas e o excesso de citações cinematográficas conspiram para deixar o filme mais confuso do que necessariamente denso.

De qualquer forma, é um filme original, feericamente inventivo, adulto e exigente. Mais que uma curiosidade, Paprika é essencial e precisa ser visto.

Comentários (2)

Gilvan | quinta-feira, 07 de Fevereiro de 2013 - 23:06

Filme muito bom, esquecido por muitos, apreciado por poucos...

william | terça-feira, 15 de Outubro de 2013 - 00:13

acabei de assistir, filme maravilhoso, bela crítica.

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