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Críticas

Cineplayers

Representante oficial da Palestina no Oscar de 2006, fita aborda com habilidade o tema do eterno conflito entre israelenses e palestinos.

7,0

Exército israelense mata palestino na fronteira com Gaza
Folha Online, 29.05.06.

Atentado com carro-bomba mata líder do Jihad Islâmico no Líbano
Folha Online, 26.05.06.

Explosão deixa ao cinco mortos em Tel Aviv
Folha Online, 17.04.06

Atentado suicida mata três israelenses na Cisjordânia
Folha Online, 30.03.06.

É uma triste realidade constatar que estas manchetes já nem nos chamam mais a atenção. Nem tanto pelo fato de elas retratarem uma realidade muito distante da nossa, mas sim – e o que é pior – porque elas se tornaram lugar comum dentro dos noticiários. Uma espécie de pauta padrão a ser cumprida diariamente pelos jornais. Fico imaginando as redações do principais meios de comunicação do mundo, ao repassar os principais notícias do dia, o editor pergunta “Bem, e o Oriente Médio, como foi o dia? Alguma bomba explodiu por lá hoje? Já sabem quantos são os mortos?”. Perdemos a dimensão trágica do evento. Seja por já estarmos vacinados pela violência que assola o nosso cotidiano (vide os últimos atentados comandados pelo PCC, no Estado de São Paulo), seja pela contínua repetição dos atentados (que se prolongam há pelo menos 5 décadas), seja até mesmo porque não compreendemos quem luta pelo quê, o fato é que encaramos o conflito entre Israel e a Palestina como algo banal, quase monótono.

Diante desta contraditória banalidade da tragédia, nos esquecemos das dezenas de mortos e feridos gerados por cada um destes ataques. Com o passar do tempo, estas pessoas viram apenas números no interior das manchetes, que se diluem dentro do jornal ao lado da frieza de outros dados estatísticos como percentuais de inflação, cotação do dólar, saldo de gols dos times no campeonato nacional e a temperatura que a meteorologia prevê para o dia seguinte.

Se deixamos de pensar nos inocentes fulminados pelos atentados, o que dizer então dos próprios terroristas? Em princípio, representantes do que há de pior na face da Terra, personificação do mal em sua essência, preferimos achar que eles nem mesmo existem. Como se os explosivos plantados em ônibus ou latas de lixo tivessem sido lá colocados por mãos invisíveis ou os carros-bombas, guiados por motoristas fantasmas.  E se parássemos um só minuto para analisar a figura destas pessoas, homens suicidas que entregam suas vidas em nome de uma crença, que se sentem honrados por terem sido escolhidos para o “trabalho”, que têm a certeza de estarem a caminho do paraíso. Como será o dia destes indivíduos momentos antes da execução? E a véspera? Sua relação com os familiares?

Com Paradise Now, o diretor Hany Abu-Assad tenta trilhar por este espinhoso caminho, levantando tais questões, sem ter a preocupação de buscar respostas definitivas. O debate é o que importa. Por mais acirrado que seja o conflito, a solução diplomática ainda será sempre a melhor alternativa. É a mensagem que, afinal de contas, o cineasta parece querer passar.

Paradise Now acompanha a vida de dois amigos de infância, Said (Kais Nashef) e Khaled (Ali Suliman). Ambos moram numa cidade próxima à Tel Aviv, passam o dia trabalhando numa funilaria de fundo de quintal e, no tempo livre, ficam se drogando e vendo a cidade do alto das montanhas. Abu-Assad faz questão de nos mostrar seus protagonistas despojados de qualquer fanatismo ou disciplina. Pelo contrário: Said e Khaled levam suas vidas de forma até mesmo desleixada, quase irresponsável. Logo no início, uma desavença fútil com o patrão faz com que Khaled quebre o pára-choque do carro de um cliente. Na cena seguinte, nenhum dos dois parece muito preocupado com o fato.

A narrativa muda seu curso quando Said é procurado por Jamal (Amer Hlehel). Said é avisado que ele e Khaled foram escolhidos para a execução de um ato suicida, em Tel Aviv. O roteiro não se preocupa muito em expor os detalhes e objetivos do plano. Apenas ressalta que a estratégia vinha sendo estudada há 2 anos e que, naquele momento, era chegada a hora de partir da teoria para a prática.

Inicialmente as reações são diferentes: ao receber a notícia, Said fica em silêncio. Não parece entusiasmado. Para ele, mesmo tendo sido doutrinado na cultura palestina desde a infância, é difícil acreditar que aquela será sua última noite na face da Terra. Ao contrário, Khaled não se contém em si. Esfuziante, sente-se honrado com o convite e não vê a hora de partir para a ação. Esse conflito interno dos personagens vai pontuar todo o terceiro terço do filme, quando os detalhes da operação são revelados e colocados em prática.

Abu-Assad, palestino de nascença, passa seu recado com algumas belas e enigmáticas seqüências: no momento em que Khaled grava o vídeo, anunciando as razões de sua conduta, a câmera apresenta problemas técnicos, que fazem com que o discurso tenha que ser refeito por duas vezes. Na primeira, o operador comenta: “Não funcionou!”. Na segunda, Jamal, que assiste a gravação, diz: “Calma Khaled! Agora você poderá fazer de novo. Terá uma nova oportunidade!”. Sutilmente, o diretor mostra a dificuldade para encontrar o equilíbrio entre a solução diplomática e a bélica. Na primeira interrupção, o aviso do operador de câmera funciona como desabafo de que toda aquele palavreado sobre a opressão de Israel sobre a Palestina já não dá mais resultado. Na segunda, a frase de Jamal revela uma esperança de que, por intermédio de uma nova tentativa de diálogo, as partes consigam chegar a um consenso.

Particularmente, esta seqüência me fez lembrar uma passagem de Munique, um dos melhores e mais subestimados filmes de Spielberg dos últimos anos, com quem Paradise Now, por razões óbvias, tem pontos de contato. Num determinado momento de Munique, palestinos e israelenes (integrantes do Mossad) precisam dividir o mesmo esconderijo. O conflito é estabelecido pela escolha da estação de rádio. Ao final, a solução é dada pelo meio termo, uma canção que agrada a ambas as partes. A seqüência é toda realizada sem diálogo, como uma espécie de duelo de espadas. Simbolicamente, Spielberg está dizendo que é possível sim, sem fazer uso das armas – a rigor, até mesmo das palavras – encontrar a paz para o conflito.

Mais tarde, em Paradise Now, na noite da véspera do ataque, todos os participantes da operação – não só os executores, mas o pessoal de auxílio, chamado internamente de colaboradores – reúnem-se à uma mesa, todos de frente para a câmera. A cena é rápida mas o cineasta atinge seu objetivo: Abu-Assad reproduz o quadro de Da Vinci, A Santa Ceia. Pode parecer exagero. Afinal de contas, o diretor está explicitamente comparando Jesus e seus apóstolos a pessoas que, no fundo, carregam bombas em suas cinturas. No entanto, a inusitado da situação é que é justamente assim que elas se vêem. Verdadeiros mártires, messias escolhidos por Alá para desenvolver a missão que lhes foi imposta na Terra.

Outra ironia está no próprio título, que nos remete a Apocalypse Now. No clássico de Coppola, a busca pelo Coronel Kurtz no interior da selva vietnamita é também uma descida ao inferno, literal e metaforicamente. No caso de Paradise Now, o efeito é o inverso: ser o escolhido para a execução do plano de ataque, é o caminho mais curto para a subida ao Paraíso, para o tão esperado encontro com os anjos do céu. Neste sentido, e revelador o diálogo entre Said e Jamal:

- “E o que acontece depois?”

- “Dois anjos virão buscá-los”.

- “Você tem certeza?”.

- “Absoluta”.

A presença da família também é outro importante aspecto considerado por Abu-Assad. Ambos os homens-bombas não escondem seus vínculos familiares: Khaled, mesmo transparecendo ser aquele que tem mais convicção na sua condição de instrumento de Alá, lembra da mãe justamente no momento da gravação do vídeo. Said, por sua vez, na manhã da operação, sabatina sua mãe de perguntas sobre seu pai, morto como colaborador da causa. Essa busca pelas raízes humanizam os personagens. Palmas para Abu-Assad que, sem exagerar no sentimentalismo, mostra que por trás de um assassino em massa, reside uma pessoa repleta de conflitos, provida de um passado, de uma memória.

Do ponto de vista político, o diretor parece ter escolhido a personagem de Suha (Lubna Azabal) como seu porta-voz. Ela é uma das clientes da oficina em que Said e Khaled trabalham. Desenvolve um flerte com o primeiro deles. No final, por intermédio de suas ações, Paradise Now, certo ou errado, apresenta seu ponto de vista: os ataques terroristas representam retrocessos na solução diplomática. Para Abu-Assad, enganam-se os palestinos que a cada bomba que eles explodem, a cada alvo atingido, sua voz está se fazendo ouvir ao redor mundo. Antes disso, estes ataques nada mais fazem do que dar mais razão para a reação de Israel. Ao contrário de encurtar o conflito, a alternativa das armas o prolonga. E, pior que isso, a um custo de inúmeras vidas inocentes.

Vencedor do Globo de Ouro de melhor filme estrangeiro, Paradise Now foi o primeiro filme indicado ao Oscar como representante oficial da Palestina, uma nação que, a rigor, sequer é oficialmente reconhecida. Todos os protestos que surgiram desde então já são conhecidos. Se estes fatos prejudicaram a candidatura do filme junto aos membros da Academia, que preferiram o sul-africano Tsotsi, é algo que, num contexto maior, não tem qualquer relevância. O que fica é o filme, a mensagem e a tentativa de sensibilizar a todos os envolvidos para que o conflito seja resolvido de uma vez por todas. Se até agora a dialética das idéias não vem colaborando muito para este objetivo, quem sabe o cinema não cumpre esse papel.

Paradise Now pode ser um começo.

Comentários (2)

Angelão | terça-feira, 26 de Março de 2013 - 09:29

Grande crítica.

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