O olhar sintomático de William Friedkin e a reapreciação de uma obra-prima
Por Fabio Bach. Autor Convidado
Parceiros da Noite (Cruising, 1980)
Obs.: Este texto é dividido em três partes. A primeira para situar o filme, explicando um pouco sobre o período em que ele foi lançado; a segunda é a crítica propriamente dita, apontando suas qualidades artísticas; já a terceira é uma análise das temáticas e da conclusão do filme e deve ser lida, de preferência, por quem já o assistiu. Boa leitura.
PRIMEIRA PARTE – O CONTEXTO HISTÓRICO
Martin Scorsese, William Friedkin, Francis Ford Coppola, Brian De Palma, Peter Bogdanovich, Arthur Penn, Michael Cimino, Steven Spielberg, George Lucas. Todos esses são grandes nomes dentro da indústria cinematográfica americana. Estabelecidos como grandes autores no final dos anos 60 e início dos anos 70, eles foram alguns dos diretores que moldaram essa nova fase no cinema estadunidense, que ficou conhecida como Nova Hollywood. Tido como lugar comum que sua inauguração se deu com o lançamento de A Primeira Noite de um Homem (Graduate, The, 1967) e Bonnie & Clyde - Uma Rajada de Balas (Bonnie and Clyde, 1967), ambos de 1967, a Nova Hollywood trouxe obras fantásticas, complexas e questionadoras do ponto de vista social, estético e existencial. Nasceram nessa época filmes como O Poderoso Chefão (Godfather, The, 1972), Noivo Neurótico, Noiva Nervosa (Annie Hall, 1977), Carrie - A Estranha (Carrie, 1976), Operação França (French Connection, The, 1971), Taxi Driver (Taxi Driver, 1976), Chinatown (Chinatown, 1974) e Um Estranho no Ninho (One Flew Over the Cuckoo's Nest, 1975). Esse poder, conquistado com muito suor e devido a uma soma de circunstâncias que moldaram o cenário perfeito para essa reciclagem da indústria, abriu as portas para uma dominância do cinema de autor que abalou suas próprias estruturas, culminando com o lançamento do ultra-mega-hipervalorizado Star Wars: Episódio IV - Uma Nova Esperança (Star Wars: Episode IV - A New Hope, 1977), em 1977. Não que o filme tenha sido contra tudo o que veio antes – afinal, estão todos os questionamentos lá: o anti-imperialismo, as cicatrizes do Vietnã, a contracultura e a cinefilia típica dos estudantes de cinema recém-formados. O problema estaria na maneira rasa e pasteurizada que o filme estabeleceu suas questões (pasteurização esta que Rocky, Um Lutador (Rocky, 1976) já havia pincelado no ano anterior).
Alguns diretores da Nova Hollywood. Brian DePalma, Francis Ford Coppola, Martin Scorsese, Steven Spielberg, William Friedkin e George Lucas.
Depois desse ano, as produções mais ousadas do período caíram por terra. O Fundo do Coração (One from the Heart, 1982), Comboio do Medo (Sorcerer, 1977), New York, New York (New York, New York, 1977) e O Portal do Paraíso (Heaven's Gate, 1980), todas carregadas da coragem e da cada vez maior megalomania de seus realizadores, foram catastróficos fiascos nas bilheterias e considerados malditos pela maioria da crítica. Porém, mesmo antes do filme de George Lucas, já haviam apontamentos para essa resistência ao cinema verdadeiramente de autor – vide Quando os Homens São Homens (McCabe & Mrs. Miller, 1971), de Robert Altman, ou O Último Filme (Last Movie, The, 1971), de Dennis Hopper – e a gestação do que hoje é conhecido como “blockbuster” já estava em andamento com O Exorcista (Exorcist, The, 1973) e Tubarão (Jaws, 1975).
Com o retorno do poder de decisão e orçamento às mãos dos produtores herdeiros da “velha guarda”, cujo pensamento estava nas cifras e não na arte, os que sobreviveram ao "pesadelo dos diretores autorais" (do ponto de vista dos produtores, claro) foram acorrentados ao sistema ou excluídos da jogada. Após tantos trabalhos complexos, o público foi anestesiado com o espetáculo escapista de George Lucas e, consequentemente, formaram uma plateia mais acomodada que iria render milhões de dólares para produções mais amenizadas, pasteurizadas e melosas ao longo das décadas seguintes. Muitos diretores foram praticamente enterrados no terceiro escalão de cineastas. Outros se adaptaram. Outros surgiram e jamais viram a luz do sucesso. Outros foram parar nas art houses e nos circuitos alternativos e/ou de festivais. Outros conseguiram consolidar suas visões artísticas com a máscara do “filme de gênero”. Filmes como Alien (Alien, 1979) e Halloween - A Noite do Terror (Halloween, 1978) foram capazes de dar continuidade ao princípio de que a linguagem autoral trabalha paralelamente com o mercado, sendo que estes dois citados são infinitamente superiores em estilo, linguagem e temática se comparado a hipervalorizado Star Wars: Episódio IV - Uma Nova Esperança (Star Wars: Episode IV - A New Hope, 1977) – fica registrada minha alfinetada.
Parceiros da Noite (Cruising, 1980)
Logo depois, os anos 80 viram Blade Runner – O Caçador de Androides (Blade Runner, 1982), Enigma do Outro Mundo (Thing, The, 1982), os suspenses metalinguísticos de Brian De Palma e a filmografia toda de Martin Scorsese nesta década (dentre outros inúmeros exemplos) falharem terrivelmente graças a grandes hits melodramáticos e/ou escapistas como E.T. - O Extraterrestre (E.T. The Extra-Terrestrial, 1982) – um filme excelente, reconheço, mas que não gosto –, Rocky III - O Desafio Supremo (Rocky III, 1982) e Rocky IV (Rocky IV, 1985), Conduzindo Miss Daisy (Driving Miss Daisy, 1989), Gente como a Gente (Ordinary People, 1980), Laços de Ternura (Terms of Endearment, 1983), as continuações de Star Wars e as aventuras de Indiana Jones. E assim, os anos 80 foram berço de produções trôpegas e extremamente bregas, ainda que tenham caído no gosto da maioria (eu mesmo gosto de –, Rocky III - O Desafio Supremo (Rocky III, 1982), mas sei de sua inferioridade). Também não posso deixar de apontar que alguns filmes desse período são maravilhosos e devem ser excluídos dessa lista de obras maniqueístas e escapistas (no sentido pejorativo que apliquei), como Rain Man (Rain Man, 1988), De Volta para o Futuro (Back to the Future, 1985), Sociedade dos Poetas Mortos (Dead Poets Society, 1989), Amadeus (Amadeus, 1984), dentre outros.
Outro fator que deve ser comentado – e finalmente entrando no tema central do texto – é: a situação da comunidade gay na época do lançamento de Parceiros da Noite (Cruising, 1980). Muitos membros de grupos pelos direitos LGBTQIA+ da época pensaram que o filme retrataria a comunidade de forma negativa, algo incoerente com o filme e com a carreira do próprio Friedkin, que retratou a mesma comunidade em uma obra que representa a contraparte solar do mesmo tema (Os Rapazes da Banda (Boys in the Band, The, 1970)). Tais protestos ocasionaram diversos problemas para a equipe de filmagem, como boicotes e atos que visavam atrapalhar as gravações do filme. Logo depois, vale apontar, veio a devastadora pandemia do vírus HIV/AIDS, que fez com que alguns críticos apontassem o filme como uma narrativa quase profética sobre o mal que estava surgindo – o que não deixa ser coerente, apesar de bizarro (ler a terceira parte deste texto). Por outro lado, a censura caiu matando nas cenas do filme, alegando tratar-se de um atentado dos mais agressivos aos ditos “bons costumes” e às famílias americanas de "boa índole" (conservadorismo oriundo da era-Reagan).
Parceiros da Noite (Cruising, 1980)
“Tá, mas cadê a crítica de PARCEIROS DA NOITE?!” Antes de qualquer coisa, se faz extremamente necessário traçar um panorama da época do lançamento do filme para compreender seu fracasso comercial, além da polêmica que o acompanha até os dias de hoje. William Friedkin, depois do lançamento de duas obras que foram sucesso de público e crítica (Operação França (French Connection, The, 1971), em 71, e O Exorcista (Exorcist, The, 1973), em 73), encontrou o mesmo empecilho que seu colega de profissão Francis Ford Coppola: o Ego. Graças ao sucesso, Friedkin se entregou a Comboio do Medo (Sorcerer, 1977), uma produção que custou quase dez vezes mais do que o previsto e foi incompreendida em sua época, além de bombardeada por hipervalorizado Star Wars: Episódio IV - Uma Nova Esperança (Star Wars: Episode IV - A New Hope, 1977) na bilheteria (o filme estreou uma semana depois do filme de George Lucas). Independente de sua qualidade (e é, sim, uma obra-prima), Comboio do Medo (Sorcerer, 1977) deu um dos maiores prejuízos aos estúdios. Enquanto todo mundo tentava se reerguer de fracassos (ainda que Apocalypse Now (Apocalypse Now, 1979) tenha vencido a Palma de Ouro em Cannes e seu valor foi compensado nas bilheterias, o trauma foi enorme), Coppola e Friedkin insistiram nas produções dos “seus sonhos”, gerando o esteticamente belíssimo O Fundo do Coração (One from the Heart, 1982), de Coppola, que afundou a produtora American Zoetrope, e este Parceiros da Noite (Cruising, 1980), de Friedkin, que se tornou uma das obras mais incompreendidas e injustiçadas do cinema americano.
Al Pacino e William Friedkin Parceiros da Noite (Cruising, 1980)
SEGUNDA PARTE – A CRÍTICA
O astro Al Pacino interpreta Steve Burns, um jovem e inexperiente policial que recebe a missão de se infiltrar no submundo da homossexualidade sadomasoquista das noites de Nova York para dar um fim a uma série de assassinatos brutais. De acordo com as investigações lideradas pelo Capitão Edelstein (Paul Sorvino), há um assassino em série caçando membros da comunidade gay bdsm. Burns não diz nada sobre o caso à sua namorada Nancy (Karen Allen), e se distancia dela para que não haja perigo em sua vida pessoal, ao mesmo tempo em que desenvolve uma pura e sincera amizade com Ted, seu novo vizinho homossexual. Aos poucos, o jovem policial acaba sendo afetado pela fauna urbana que passa a frequentar.
William Friedkin, como de praxe, não poupa o espectador de um olhar mais perfurante da sociedade, ao mesmo tempo em que não permite uma compreensão mais simples do que quer expor com o filme (uma das causas da bilheteria baixa). Disposto a retratar da maneira mais crua possível o ambiente em questão, Friedkin mergulha sua câmera – e consequentemente o espectador – em travellings laterais que deslizam entre corpos masculinos revestidos de couro, jeans e lenços coloridos que funcionam como códigos para tipos específicos de fetiche. Aliás, a primeira sequência do filme, a da boate, é extremamente provocativa. O incômodo e o riso nervoso completamente deslocados que nos surgem, oriundos do choque daquele ambiente e de seu impacto visual, são tão grandes e descontrolados que colocam em xeque nossos princípios e preconceitos enquanto espectadores, independente se esses espectadores se identificam como progressistas, conservadores ou indivíduos neutros (“será que sou homofóbico por sentir certo asco disso?” me perguntei, sinceramente). Ao mesmo tempo, tememos duplamente: pelo futuro mergulho da personagem de Al Pacino nesse ambiente, e, o mais instigante de tudo, tememos gradualmente pela vida desses homens (que julgamos e sentimos certo asco num primeiro momento), pois eles são as vítimas do serial killer! Logo em seguida, entra em cena um homem alto de cabelos pretos que, esperando o momento certo, conseguirá mais uma presa para seu ritual de esfaqueamento um ser humano pelas costas, após amarrá-lo e deixá-lo indefeso em cima da cama de um hotel barato. A genialidade da narrativa está em transformar o inicial asco experienciado na cena da boate, em medo, pena e piedade – e a sequência em que o assassino tortura psicologicamente sua vítima (e o espectador) no quarto de hotel é um dos momentos mais geniais de Friedkin como realizador.
Parceiros da Noite (Cruising, 1980)
Mergulhado em um mórbido tom azulado e opressor, o filme se mostra igualmente primoroso em toda sua parte técnica. A fotografia de James Contner cria uma ambientação quase surreal para ocultar/apontar/sugerir possíveis pontos de esconderijo para o assassino, auxiliada pela sábia decisão de Friedkin em mergulhar o rosto do algoz nas trevas. O figurino apresenta uma lógica narrativa extremamente eficiente – a gravata do Capitão Edelstein, por exemplo – assim como a fantástica direção de arte, que cria ambientações que dizem muito sobre as personagens (vide o paralelo entre o espaçoso e aconchegante apartamento de Nancy e o quarto apertado, escuro e completamente desprovido de cor que Steve Burns passa a viver). Vale apontar também a maquiagem do filme que, regada a suor, faz com que todos os personagens sejam “contaminados” pelo inferno psicológico que o protagonista é submetido, além dos pedaços de corpos encontrados no rio e expostos frontalmente na cena do necrotério. O som é igualmente fascinante, apresentando uma trilha que brinca com os estilos musicais das boates retratadas, ao mesmo tempo em que introduz uma série de ruídos estranhos e dissonantes, fora que a diegese sonora é muito eficiente, provocando arrepios ao menor sinal de passos e correntes. Já a montagem intercala momentos mais contemplativos com sugestões e experimentos quase que eisensteinianos, sem comprometer em nada o ritmo da narrativa.
Parceiros da Noite (Cruising, 1980)
Escrito com maestria pelo próprio diretor, o roteiro apresenta sua visão particular do livro de Gerald Walker, que deu origem ao filme, além de ser um relato muito preciso de um microuniverso que o cidadão comum da sociedade se recusa a visitar – ou mesmo reconhecer. O submundo apresentado é pesado. Não há quem escape. A história não se fecha de uma maneira tradicional (como é costume nos trabalhos do cineasta) e as perguntas que ficam no ar são extremamente inquietantes. Ainda assim, William Friedkin encontra momentos para destilar seu senso de humor atípico ao colocar Powers Boothe explicando o que cada cor de lenço significa (e a reação de Al Pacino é hilária pela sua quase quebra de sutileza). E por falar em Pacino, não posso deixar de admirar a competência com que o ator transita entre o espanto, o medo e a gradual liberdade que expressa à medida que sua personagem passa a conviver dentro de um universo completamente novo e despojado para sua até então realidade – o carinho que Burns nutre pelo vizinho é tocante, ao mesmo tempo que seu olhar para a câmera no final do filme é de uma complexidade assustadora (mais sobre isso a seguir). De forma similar, todo o elenco ao redor de Pacino faz um trabalho igualmente rico.
Lançado no mesmo ano de filmes geniais como O Homem Elefante (Elephant Man, The, 1980), Touro Indomável (Raging Bull, 1980) e O Iluminado (Shining, The, 1980) (e o Oscar teve a pachorra de premiar Gente como a Gente (Ordinary People, 1980)), Parceiros da Noite (Cruising, 1980) é uma das grandes obras de William Friedkin, esse genial cineasta, e um dos mais crus retratos dos submundos da “Big Apple”.
Parceiros da Noite (Cruising, 1980)
TERCEIRA PARTE – O FINAL
Obs.: Aqui, pretendo expor algumas teorias acerca da conclusão do longa. Recomendo que leiam após assistirem ao filme.
O final entregue por William Friedkin não é fácil. Aparentemente simplista, o fecho da narrativa repete a mesma temática apresentada com o misterioso som de tiro em Operação França (French Connection, The, 1971). Aqui, porém, temos um olhar que quebra a quarta parede do filme e que ganha força apenas para quem realmente prestou atenção a uma série de detalhes ao longo do filme. Para melhor ilustrar, é bom apresentar algumas das teorias nascidas das possíveis interpretações:
Parceiros da Noite (Cruising, 1980)
Teoria n.1 – O homem errado é preso
Quem acompanha a narrativa atentamente, percebe que o assassino é revelado logo no início do filme, mas sua identidade nos é desconhecida. Porém, podemos notar as seguintes características: ele é alto, tem os cabelos meio enrolados, é musculoso, um dos seus dentes é quebrado (pouca coisa, mas é uma característica marcante por conta de um plano-detalhe) e usa óculos Ray Ban espelhados. Nos demais assassinatos, não há como identificar as mesmas características. Quando o caso é encerrado, Stewie, o suspeito, é preso, mas declara inocência, dizendo que nunca matou ninguém – o que faz sentido para nós, espectadores, visto que suas características físicas pouco ou nada tem a ver com as do assassino mostradas no início do filme. Logo após uma conversa de Steve Burns e o capitão Edelstein, vemos a cena de crime onde Ted, o vizinho, é vítima de um ataque com faca. Ao lado do corpo, a faca semelhante à usada pelo assassino. Em seguida, temos a imagem de um homem com as mesmas características do maníaco do início do filme, entrando em uma boate. Na última cena, Nancy entra em seu apartamento e encontra Burns se barbeando. Ele diz a ela que precisa conversar. Nancy vai para a sala para esperar Burns terminar de se barbear e encontra uma jaqueta de couro, um quepe e um par de óculos Ray Ban espelhados (ela até se diverte vestido esse estranho figurino). Por último, Burns olha para a câmera e o filme acaba.
Parceiros da Noite (Cruising, 1980)
O que se conclui?
Burns prendeu o homem errado. O assassino, ainda livre e disposto a caçar o protagonista, mata uma pessoa importante na vida de Burns (no caso, Ted). O olhar do capitão Edelstein ganha um significado de alerta: ele percebe que Burns está em perigo. E, por fim, o protagonista está para revelar algo à sua namorada, provavelmente irá assumir sua homossexualidade e pretende viver com Ted (Burns não sabe de seu assassinato) – lembramos que Burns demonstrou claro sentimento de ciúme ao confrontar o namorado de Ted, além do declarado afeto pelo amigo (“Queria poder fazer mais por você...”, ele diz em determinado momento do filme). O olhar de Burns para a câmera (e para o espectador), então, significa algo como “Não me julgue. Este sou eu”, e nos dá um sentimento de tristeza, pois ele já está fadado a não viver com aquele que seria seu futuro parceiro.
Parceiros da Noite (Cruising, 1980)
Teoria n.2 – As vítimas são o próprio assassino
Recapitulando as características do assassino na Teoria 1, o espectador mais atento perceberá que a segunda vítima, a do parque, possui TODAS AS CARACTERÍSTICAS do assassino do início do filme, inclusive o dente quebrado. O que se percebe de diferente é a voz (a voz do assassino é propositalmente dublada e remixada). Neste segundo assassinato, temos a total ocultação do rosto do assassino, mas é possível perceber que este é um pouco mais magro, de postura levemente curvada e cabelos mais lisos. Duas conclusões podem sair daí:
I – A de que o assassino é Stewie, fazendo com que o caso seja encerrado no fim do filme, transformando o assassinato do início em um ato solto em relação à trama principal e o assassinato de Ted em crime passional – o namorado de Ted, que ameaçou Burns com uma faca semelhante à do crime, provavelmente matou seu parceiro por ciúme e fugiu. Particularmente, penso que essa conclusão não se sustenta, pois se mostra muito simplista e com certos furos;
II – O assassino é a terceira vítima assassinada no filme (o homem de barba morto no “inferninho”). Isso faz com que prestemos mais atenção ao assassino no terceiro crime. Ele é claramente mais baixo, com cabelos mais lisos e curtos, e usa os mesmos óculos ray ban espelhados, além de ser muito mais troncudo de corpo. Estas são as características da PRIMEIRA VÍTIMA do filme.
Parceiros da Noite (Cruising, 1980)
O que se conclui?
Em “I”, que o caso se encerrou, o culpado é Stewie, o assassinato de Ted foi realmente passional e o primeiro crime se torna um ato sem ligação direta com o caso. O espanto de Edelstein poderia estar relacionado com a conclusão de que Burns pode estar envolvido de maneira indireta no assassinato de Ted;
Ou “II”, que o caso foi encerrado, mas Stewie é inocente. E é aqui que temos uma leitura mais subjetiva da obra. Seria o serial killer uma espécie de metáfora sobre o avanço do vírus HIV/AIDS, onde o instinto assassino é “transmitido” e imortalizado nas ações desse fantasma e de suas vítimas? Esta segunda conclusão, aliás, transforma o filme em um excelente exemplar de terror psicológico. O espanto de Edelstein fica mais carregado do terror que ele vislumbra para o protagonista (há algo incompreensível e ameaçador à solta e Burns pode ser a próxima vítima). O olhar de Burns para a câmera em ambas as conclusões teria a mesma interpretação da teoria anterior.
Parceiros da Noite (Cruising, 1980)
Teoria n.3 – Steve Burns é o assassino (ou um dos)
Esta é uma das minhas favoritas. Consideremos todas as anotações do item “II” da segunda teoria e adicionamos o importantíssimo fato de Burns guardar para si uma jaqueta de couro, um quepe e os óculos Ray Ban espelhados (idêntico ao do assassino). Se lembrarmos das características do assassino no terceiro crime, podemos eliminar a possibilidade de ser a primeira vítima. O fato é que a primeira vítima é muito parecida com o próprio Burns – Arnaldo Santana, intérprete da primeira vítima do filme, é fisicamente semelhante a Al Pacino e o assassino da cena do “inferninho”. Vale apontar também que a direção de William Friedkin provoca esse olhar, ao enquadrar Steve Burns de maneira semelhante ao assassino em determinados momentos do filme.
Parceiros da Noite (Cruising, 1980)
O que se conclui?
I – Burns é o verdadeiro assassino, eliminando o tom sobrenatural da Teoria 2. Dá para se concluir também que Burns matou Ted. Mas se ele realmente tivesse matado Ted, o namorado não estaria foragido (fugiu por medo ou foi igualmente assassinado?). Assim o olhar do capitão Edelstein para Ted ganha ainda mais força: ele percebe o que ocorreu ali, potencializando a reação dele ao nome John Forbes (o nome falso que Burns utilizou durante o caso). Então, a pessoa que entra na boate é o próprio Burns, preparado para atacar novamente, e seu olhar para a câmera, no final, ganha um tom muito mais macabro;
II – Burns é o próximo na linhagem de assassinos. A metáfora do vírus HIV/AIDS retorna aqui e “contamina” o protagonista, deixando-o como mais uma vítima/algoz nesse ciclo de violência sobrenatural, com Edelstein vislumbrando o infindável ciclo de violência que ainda está por vir, agora pelas mãos de seu subordinado que foi sugado impiedosamente para dentro de todo esse horror. Vemos, então, Burns caminhar para a boate e, posteriormente, ele nos encara como se dissesse “algo terrível está chegando”.
Parceiros da Noite (Cruising, 1980)
Independente das respostas especuladas dessas essas teorias (que, na verdade, não são importantes), o filme em si é uma obra-prima não só do suspense, mas como um ato questionador filosófico e social, onde um detalhe que é pescado pelo nosso olhar já dispara nosso poder de raciocínio e nos acompanha pelo resto do dia com suas mais variadas leituras possíveis, além de fazer com que questionemos nossos conceitos e preconceitos acerca de um nicho que desconhecemos. Quem assistiu e quiser, procure discutir essas e outras teorias com amigos. Será, com certeza, um passatempo interessante e infinitamente enriquecedor.
Caso encerrado.
Parceiros da Noite (Cruising, 1980)
Comentários (0)
Faça login para comentar.
Responder Comentário