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Paris, Texas

(Paris, Texas, 1984)
8,7
Média
418 votos
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Sua nota

Críticas

Cineplayers

Um lugar para um coração partido

10,0

O reencontro dos irmãos Travis (Harry Dean Stanton) e Walt (Dean Stockwell), após anos sem um saber do paradeiro do outro, indica desde o início de Paris, Texas (idem, 1984) que algo ali não está certo. Não somente pelo fato de Travis ter desaparecido do mundo e agora ter sido encontrado vagando maltrapilho, desmemoriado e sem rumo pelo deserto, mas principalmente por um não conseguir desvendar o olhar do outro. Walt tenta entender onde seu irmão esteve todo esse tempo; Travis parece não se importar muito de revê-lo. Como dois estranhos, tentam se reconhecer por trás das marcas que os anos deixaram. A lembrança súbita de um lugar onde a família tinha um terreno na época de infância, no interior texano, reascende uma luz nos olhos embotados de Travis. Eles nunca estiveram lá, mas o pai deles prometera uma viagem a Paris para a mãe. Para a decepção de todos, não a capital francesa, mas sua homônima no estado do Texas. Um riso cúmplice nasce entre os dois perante à lembrança, que de repente se portam como crianças de novo por um instante. Paris, no Texas, só existe em uma polaroide – e na memória de Travis e Walt.

O que existe de verdadeiramente valioso para os personagens de Wim Wenders nunca está no presente e nunca está no lugar que ocupam. Todos carregam consigo somente a memória de um tempo, de alguém, ou a esperança de um tempo, de alguém. Por isso, vagam incompletos em busca de um destino que jamais a câmera do diretor permite ser materializado em cena. A forma de compensar o vazio do inalcançável se revela através do abstrato da memória, ou por meio de fotos, frames, vídeos, retratos, pedaços de papel ou celuloide que trazem conforto e estimulam a continuidade da busca. A vida, no cinema de Wenders, está sempre enquadrada nesses registros. Fora deles, longe do enquadramento, ela é vazia, incompleta, inconclusa.

Não é de admirar que a peça de Sam Shepard, sobre um homem que recupera a memória e parte em busca de reconstruir a própria família fragmentada por seus erros do passado, tenha chamado a atenção do diretor alemão. Depois de tanto vagar por sua Alemanha devastada pelas guerras mundiais, em filmes como Alice nas Cidades (Alice in den Städten, 1974), Movimento em Falso (Falsche Bewegung, 1975), No Decurso do Tempo (Im Lauf der Zeit, 1976) e O Amigo Americano (Der Amerikanische Freund, 1977), Wenders transferiu para as estradas do meio-oeste americano o seu lamento pela tal morte do cinema e sua visão única sobre as fronteiras e seus significados literais e metafóricos. Ao mesmo tempo em que transmitem a ideia de limitação, as fronteiras podem também trazer a sensação de estabelecimento, pertencimento, proteção. É a perspectiva que determina o sentido de tudo: se alguns cineastas exploraram a fundo seus locais e origens, outros como Wenders entendem que a compreensão de mundo e de si próprio está no ato de se deslocar. Ao ultrapassar as fronteiras, Trevis se perdeu para depois se reencontrar. A nova estrada a percorrer aponta para o único caminho possível de destino: seu filho Hunter (Hunter Henderson) e sua esposa Jane (Natassja Kinski).

Essa movimentação constante reflete a inquietação do cinema da Nova Hollywood, que já estava morrendo nesse início dos anos 1980, quando Wenders pousou na América. A busca pelo Oeste americano, a lendária terra dos sonhos, atraiu no diretor não uma possibilidade de destino de sucesso, mas sim despertou sua empatia pelos temas que mais foram caros àquela geração andarilha, que cruzou por tantas vezes todas as rotas e estradas desérticas em busca de algum sentido, algum lugar de pertencimento, em meio a uma crise moral, econômica, social, política, cultural. Enquanto seu conterrâneo Werner Herzog explorou esse mesmo cenário sob uma perspectiva mais cínica em filmes como Stroszek (idem, 1977), Wenders pegou para a si a parcela de melancolia da coisa. A jornada em si significava muito mais do que o destino final. Paris, no Texas, nunca de fato se materializa durante o filme, mas emana o tempo todo uma ideia de síntese de tudo aquilo que consome seus personagens: o inalcançável.

Jane é a figura que o filme jamais permite ser novamente alcançada por Travis. Wenders a torna viva por meio dos registros em super-8 que Walt encontra de uma viagem em família que fizeram há muitos anos atrás, nos quais ela surge sorridente, solar, apaixonada, livre. Enquanto sua imagem soa como um fantasma amargo e cruel a esmagar o coração de Travis, para o pequeno Hunter é um vislumbre de seu passado – e talvez futuro. Ainda que volte a vê-la mais tarde, Travis é separado por um vidro que o esconde da ex-mulher. Ela não pode enxergá-lo mais. Ele é apenas um reflexo sobre o rosto dela quando a câmera de Wenders sobrepõe os rostos dos dois sobre a superfície espelhada. Em uma das cenas mais tristes e mais arrebatadoras do cinema, resta a Jane contar sua história ao telefone, isolada, sozinha, tão perto e ao mesmo tempo tão longe do amor da sua vida.

Se o próprio Wenders atribui ao cinema e à fotografia o poder de lhe salvar dos fantasmas de sua Alemanha carregada de culpa e miséria, dando-lhe sentido em sua trajetória como eterno viajante, não é surpresa que em seus filmes exista uma metalinguagem no que diz respeito a como ele trata o cinema como algo libertador e consolador dentro da própria narrativa. A polaroide de Paris, Texas, é o vínculo que ainda resta ente os dois irmãos, pois evoca um passado familiar, a lembrança dos pais, a nostalgia, o lamento pelos sonhos que não puderam realizar. Os registros em super-8 resguardam uma época na qual Travis e Jane ainda se amavam, ainda planejavam o início de uma família, deixando a semente necessária no coração de Hunter para sua futura redenção. O cinema pode até estar morto na visão de Wim Wenders, mas é ele quem traz a vida em seus filmes, quando tudo mais esmorece e desaparece pelo retrovisor do carro ao longo da estrada sem fim.

Texto integrante do especial Baú dos Clássicos

Comentários (7)

Heitor Romero | segunda-feira, 27 de Abril de 2020 - 14:12

Obrigado, meninos :)

Caio César | segunda-feira, 27 de Abril de 2020 - 19:05

Amo seus textos, Heitor

João Pedro Duarte | segunda-feira, 04 de Maio de 2020 - 09:43

Wim Wenders maravilhoso. Lembro da primeira vez que vi Paris, Texas. Não consigo nem descrever o sentimento, indicava para todo mundo assistir. Ótimo texto, Heitor.

Claudiney Gonçalves de Oliveira | sexta-feira, 03 de Julho de 2020 - 10:34

Filme que marca a alma!!! Interpretaçôes impecáveis , roteiro e direção sublimes!!!
Fazem desse filme uns dos melhores filmes europeus de todos os tempos!!!

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