Saltar para o conteúdo

Críticas

Cineplayers

Poema da reconstrução.

10,0
Em seu segundo longa metragem, o francês Damien Manivel não somente é jovem de idade e de ofício. Com um trabalho como o de O Parque, ele estabelece não apenas uma visão de cineasta como também de autoralidade e de liberdade de visão, se distanciando não apenas do cinema francês vigente, como também conseguindo imprimir uma voz diferenciada ante a produção cinematográfica atual. Que voz é essa? Um olhar dissonante não basta para se tornar relevante, mas Manivel radiografa uma potente visão da realidade adolescente atual, comportamento compartilhado não por um segmento da sociedade, mas abrangente a um número cada vez maior de participantes. No mundo real, pessoas podem ou não se interessar umas pelas outras em encontros fortuitos nutridos pela internet; na fantasia, tudo que foi vivido pode ser deletado da existência caso a decepção nos cegue. Manivel vai tratar de embaralhar os mundos.

Após a timidez inicial de um típico encontro nascido na virtualidade, Maxime e Naomie exploram a ambientação como se sobrevoassem por si mesmos. Eles estão em um ambiente onde o bucólico escapa por pouco, ao cruzar com um futebol infantil ou outras representações do amor jovem. Andam fantasmagoricamente a esmo, em busca de aplacar o vazio do hoje. Em breve estarão na jornada do entendimento da pele, por entre as folhas que servirão de camuflagem para o ato e para o próximo ato. Ao desejo adolescente também se seguirá o tédio maduro, o abandono consciente e a dúvida quanto ao passo seguinte, uma vida inteira no ritmo de uma tarde. Jovens no início da tarde e velhos no fim da mesma, o implacável destino que o tempo reserva àqueles que ousam desafiar suas regras. O filme parece decretar a inevitabilidade das relações e abre um leque muito consciente quanto a fugacidade das relações.

É noite, e Maxime partiu. Estaria qualquer um de nós disposto ao recomeço no qual fomos eternamente posicionados? A selva das incertezas guarda a possibilidade de refazer o caminho e apagar ilusões. A partir desse momento, o parque de Manivel se desdobra para mostrar o caráter cruel do fim e do princípio e ingere todas as possibilidades de desconstrução. Através de uma montagem impressionante, o filme experimenta dois tempos de realidade que não apenas se comunicam como também se complementam. Se na primeira parte a ingenuidade, o fascínio pelo novo e os riscos assumidos dão o tom, na segunda nossa protagonista decide apagar as pegadas que levaram a decepção, e para unir dois momentos tão díspares e tornar a experiência impactante, a montagem realiza com precisão os tempos mortos e o compasso de espera no qual vivem os dois protagonistas.

De caráter cada vez mais alegórico conforme avança narrativa pelos seus breves 70 minutos, a narrativa proposta pelo diretor é tão articulada que aparenta não caber em tão curto espaço de tempo a aventura surrealista de Naomie rumo ao início de tudo. Mas no comando da maquinaria está um autor no profundo sentido da expressão e que mesmo tão recém chegado na cadeira já demonstra maturidade e inventividade de um nome que já fez muitos testes e agora apenas afina suas lâminas. Escrito em nova parceria entre ele e Isabel Pagliai, Manivel confiou também suas lentes a Pagliai, o que talvez justifique esse projeto tão centrado na união do poder da imagem, da comunicação e da construção do produto final, e sua transformação nessa pequena imensa joia sobre a jornada humana, entre o florescer e o sucumbir ante o imponderável.

Nada disso seria possível sem o profundo conhecimento da coloquialidade e de como subverter o natural. Se a primeira parte do filme é uma ode à simplicidade do primeiro amor e à urgência implacável do tempo, a segunda além de abrir uma janela para o fantástico ainda reconfigura o tomo inicial, quase como transformando o filme numa ficção científica sobre como mover algo tão inoxeravel como a cronologia. Talvez na ânsia de remediar o passado, Naomie seja um alter ego do próprio Damien Manivel; ambos autores que tentam domar o espaço-tempo, ambos descortinam a veracidade dos fatos para criar e reescrever sua travessia ao contrário. Através dessa reconstrução tão evidenciada do nosso hoje, o filme não fornece possibilidades de mudanças. É apenas um leque que se abre e permite que todo sonho possa ser pensado para além da concretização.

Comentários (0)

Faça login para comentar.