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Críticas

Cineplayers

O maravilhoso mundo híbrido de Jaume.

9,0
A abertura do novo filme de Jaume Collet-Serra é uma espécie de clipe de uns 5 minutos de duração mostrando a vida de seu protagonista Michael MacLaulei e sua rotina diária. De forma prática, eficiente e muito elucidativa, o cineasta apresenta seu arsenal de ideias e ainda contribui para afirmar qual será o nível do seu trabalho de montagem e da parceria com Nicolas de Toth. Como o tema do momento é a crise econômica, Collet-Serra dá sua contribuição com o deboche com que trata o ponto de partida de sua trama - principalmente na amarração do plot, no encaminhamento para o final. É a forma encontrada por um autor desprestigiado como é o espanhol para dar molho ao mais novo thriller, o quarto encontro bem sucedido entre ele e seu fetiche Liam Neeson. Uma sintonia fina vem sendo construída e lapidada entre autor e astro, e esse novo longa elabora o caminho árduo entre a realização dos projetos futuros e o preço que se paga pela sua realização. Ainda na abertura já muito ágil, o desenho de Michael está feito e as cenas seguintes são tão definidoras de sua personalidade quanto da bifurcação moral na qual ele será envolvido. 

Enquanto os autores europeus encontraram sua maneira metaforizada pra falar do abandono substancial que a falta de recursos acomete em indivíduos há uma década, a visão de Collet-Serra não é menos aguda mas é definitivamente mais direta e explícita, ainda que use também as alegorias para apresentar suas cartas. Apesar de nascido espanhol, o diretor vive há 25 anos em Los Angeles, e foi nos EUA onde estudou e se formou, país que lhe ofereceu seu primeiro filme, A Casa de Cera, através do produtor Joel Silver. De lá pra cá, o diretor afinou seu cinema e começou a conjugar linguagem pop com uma veia claramente autoral, fazendo releituras do universo da Nova Hollywood sempre através dos grandes estúdios, e construindo uma autoralidade possível em tempos vulgares. Essas releituras parecem ser abdicadas ao passo que consegue firmar uma assinatura e uma marca dentro de uma indústria sempre faminta por resultados, realizando produtos baratos, de prestígio crescente e cujo retorno é inevitável, tendo em vista sua economia. 

Nesse novo filme, em determinado momento o protagonista se vê envolvido às ameaças que o aprisionam num trem. Durante um desses telefonemas ameaçadores, se transporta para um lugar de sonho pra onde gostaria de transportar sua família durante a crise pessoal que passa. Isso é definido graficamente no roteiro? Não, isso é trabalho de Collet-Serra, da trilha do genial Roque Baños (de O Homem nas Trevas) e da luz de Paul Cameron, que promovem a absorção desse onírico através de um plano quase abstrato, e que como todo sonho, acaba. E rápido. Ainda que de maneira fugaz, o diretor soube construir com a ajuda de seu ator o estado de desespero interno no qual vive aquele homem, e que vai explodir junto com o motor de situações que precisará viver durante o desenrolar de um fim de tarde/início de noite, enquanto tenta sobreviver às tentações ao mesmo tempo que sucumbe a elas; o homem comum americano cedendo, diante das exigências da vida adulta e moderna. 

Além da proposta de realizar um trabalho que reflexione para além do gênero e ao mesmo tempo o enriqueça, o filme nunca é desprovido das ferramentas que o fazem também ser um produto pop, e que permite a esse cinema abrangente um cuidado que poderia ser dispensado a propostas ambiciosas; assim sendo, acaba se envernizando e tendo um caráter amplo de observação. Vide a cena onde Neeson luta com um rapaz com um violão, um planos-sequência eletrizante e de construção dificílima... afinal, os movimentos estão restritos à captação que permite um vagão de trem real, com seus bancos e corredores estreitos; aqui, mais uma vez, o trabalho de De Toth é de uma previsão absoluta. Nas mãos desse exímio construtor de tensão que é Collet-Serra, a dupla transforma essa passagem em poesia filmada, que não deixa nada a dever a passagens que Johnnie To exibiu em Three, ou na beleza insólita extraída da violência no pouco visto SPL II: A Time for Consequences; esse é um cinema que os vulgares estão evidenciando e expondo com resultados imediatos na filmografia atual, e que molda um cineasta como Jaume.

Para quem não absorve resultados elaborados esteticamente dentro do cinema americano para exportação e consumo a ritmo de 'fast food', é um susto encontrar a ambição narrativa e estética que o diretor sempre propõe. Através da crise econômica americana, construir um mosaico de suspense numa escola absolutamente 'hitchcockiana' e ir além da rapidez das imagens para revelar também um raro caleidoscópio de emoções baratas é a prova da evolução e da reinvenção de Collet-Serra, um cineasta cuja entrega é sempre além do que o prometido. Graças ao entrosamento técnico, o elenco afiado (com destaque para a participação milimétrica de Vera Farmiga e seu arsenal literalmente inesquecível) e ao roteiro eficaz que serve absolutamente aos propósitos do autor, vemos a crise redesenhada a partir dos signos do gênero, promovendo um dos filmes mais meticulosos desse início de ano, mais uma tacada do diretor na direção de se tornar um personagem essencial para definir a formação dos novos observadores do cinema, que vão escolher de que lado ficará essa nova escola, onde o gênero não ousa esconder a sofisticação imagética e a proposta autoral que podem subverter um típico lançamento de fim de semana. 

Comentários (1)

Marcelo Queiroz | quarta-feira, 07 de Março de 2018 - 12:19

Do Serra sempre espero o melhor, esse aí parece bem interessante.

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