Saltar para o conteúdo

Críticas

Cineplayers

Um quebra-cabeça mental que despertará grandes emoções nos espectadores. O filme é repleto de conteúdo e técnica.

9,0

ESTE TEXTO PODE ENTREGAR ALGUNS SEGREDOS SOBRE O FILME. RECOMENDA-SE LER APENAS APÓS TER ASSISTIDO À OBRA.

O cinema pode ser uma experiência fascinante. Claro que filmes-pipoca, visando apenas o entretenimento e a diversão, têm seu valor e, inclusive, importância histórica no desenvolvimento da arte. No entanto, é inegável que a satisfação é muito maior ao se assistir uma obra complexa e desafiadora, que consegue subverter todas as expectativas do espectador, exigindo deste não apenas uma apreciação passiva, mas reflexão e interpretação.

Filmes desta natureza são raros, mas existem. A Passagem é um deles. A produção conta a história de Sam, um psiquiatra chamado para substituir a doutora que tratava de Henry Letham, um garoto com problemas. Em um de seus primeiros encontros, Henry conta ao doutor que pretende cometer suicídio dentro de três dias. Tentando auxiliar o paciente, Sam começa a investigar para descobrir a razão do desespero do rapaz, envolvendo-se em acontecimentos sem explicação lógica.

Habilmente escrito por David Benioff e magistralmente posto em celulóide pelo diretor Marc Forster, A Passagem é uma obra onde cada detalhe tem um significado e importância, como um castelo de areia concebido pelos cineastas. Graças a isto, A Passagem configura-se como um daqueles poucos filmes que melhora a cada nova visita, uma vez que o espectador pode observar com mais clareza toda a riqueza da narrativa, descobrindo algo novo sempre que se assiste.

Dessa forma, a trama encaixa-se na linha de obras-primas como O Sexto Sentido, Clube da Luta e Cidade dos Sonhos. Durante toda a produção, existem pistas para o mistério e apenas assistindo mais de uma vez é possível compreender tudo o que se vê na tela. Mesmo aquelas cenas que não fazem sentido ao final, são construídas de forma a deixar a platéia pensando e tirando suas próprias interpretações.

Como se não bastasse o forte e envolvente argumento, o que realmente faz de A Passagem uma obra tão exemplar é a direção de Marc Forster. O cineasta, que já havia demonstrado extrema competência no depressivo A Última Ceia e no tocante Em Busca da Terra do Nunca, exibe todo o seu talento ao transpor o surrealismo do roteiro em termos visuais, conseguindo a façanha de compor uma peça cinematográfica que incomoda, perturba, mas hipnotiza como poucas nos últimos tempos.

Um dos exemplos do brilhantismo da direção de Forster está na inventividade da transição das cenas. Auxiliado por um belo trabalho de edição de Matt Cheese, o cineasta realça o aspecto onírico de A Passagem ao fazer com a obra flua de uma cena para outra de forma ágil e dinâmica, seja fundindo objetos (como quando uma porta fecha e se transforma em outra que se abre) ou acelerando a montagem (como no início, quando um personagem olha pela janela e já vê, pelo vidro, a pessoa com quem conversava na sala).

Além disso, Forster mostra uma visão diferenciada ao, inclusive, quebrar algumas regras básicas do cinema de forma a acrescentar valor ao seu filme. É o que acontece, por exemplo, em certas cenas de diálogos, quando o cineasta ignora o “eixo dos 180 graus”, mostrando os dois personagens conversando do mesmo lado da câmera.

E o melhor é que esta originalidade e ousadia técnica do diretor não são apenas um exercício de estilo ou massagem no ego. Pelo contrário, todas as opções encaixam-se perfeitamente ao filme, uma vez que apenas engrandece a história. A fuga dos padrões das cenas de diálogos, por exemplo, colabora para dar mais destaque à confusão das identidades entre Sam e Henry, um tema presente desde o início do filme.

Todos estes artifícios criados e utilizados por Forster, somados, estabelecem o tom perturbador de A Passagem. O espectador sente-se constantemente desafiado, evitando qualquer possibilidade de dispersão e tédio. A narrativa do cineasta surpreende a cada momento, utilizando distorções, cenas repetidas e ângulos inusitados, reforçando o clima de suspense e fazendo do filme um interessantíssimo estudo de técnica, comandado por um diretor com pleno conhecimento de seus recursos.

Mas não é apenas de cenas incômodas que Forster constrói A Passagem. Pelo contrário, há diversas passagens nas quais o diretor consegue capturar momentos de pura magia, em seqüências sublimes, daquelas capazes de enlevar o espectador. É o caso, por exemplo, da cena em que Henry confronta seu pai, operando um “milagre” nele. São momentos de beleza singela que, por incrível que pareça, misturam-se com perfeição ao tom surreal da obra.

Fechando com chave de ouro o tripé direção/roteiro/atuações, o elenco de A Passagem é exemplar. Ainda que haja mais destaque para a trama e para a “atmosfera” do que para os personagens, o tempo destinado a eles é suficiente para que cada um exiba seu talento. McGregor é hábil na paulatina construção da paranóia de Sam, preso em eventos que não consegue explicar. Naomi Watts, por sua vez, ilumina a tela cada que aparece, ainda que tenha pouco tempo em cena. Já Bob Hoskins exibe experiência e segurança na bela composição do mentor cego de Sam, com destaque para o já citado momento com o personagem de Gosling.

Este, aliás, comprova ser um dos grandes atores da nova geração. Mais uma vez, Gosling encarna um papel com intensidade, entregando uma interpretação contida no papel de Henry Letham. Qualquer ator poderia exagerar na construção do personagem, mas Gosling opta por um minimalismo que apenas realça o mistério em torno de Henry, além de parecer sempre no limite do seu nervosismo, prestes a explodir.

Mas também há problemas no paraíso. O roteiro de Benioff e a direção de Forster parecem deixar pistas demais sobre a verdadeira natureza do mistério. Como conseqüência, A Passagem não chega a ser tão surpreendente quanto poderia. Da mesma forma, o espectador pode se questionar sobre o exato momento em que se passa todo o “sonho” dele. É um delírio, enquanto está entre a vida e a morte? Ou é algo que acontece na transição?

Já outros momentos que podem deixar algumas pessoas insatisfeitas também podem ser interpretados como pontos fortes do roteiro. É o caso de certas cenas que parecem desconexas da trama, mesmo após a revelação. No entanto, basta um pouco de reflexão para achar sua justificativa no contexto geral.

Por exemplo, há uma cena, perto do final, na qual a personagem de Naomi Watts não consegue abrir uma porta. À princípio, parece gratuita, mas pode ser interpretada como uma metáfora do fato dela ter se sentido presa, não conseguindo ajudar Henry no acidente, mesmo sendo uma enfermeira. Porém, mesmo chegando a essa conclusão, outra pergunta surge: para onde ela olhou naquele momento? Por que aquele sorriso?

Estas perguntas que surgem ao longo da obra são a grande força de A Passagem. O roteiro faz sentido como um todo, mas ainda deixa muita margem para interpretações, chamando o espectador a participar do processo de construção do filme. E isto, quando feito por cineastas talentosos, é sempre fascinante.

O resultado final é que A Passagem pode ser qualificado como um dos melhores filmes dos últimos anos. A construção milimétrica da história e o esmero dos cineastas na construção de cada minuto da película merece a atenção do espectador. Não é um filme fácil e também não é um filme que vai agradar a todos. Mas é obrigatório para quem gosta ou pretende ver o cinema liberar-se das amarras de mero entretenimento e transformar-se em uma experiência inesquecível.

Assistam a A Passagem. E depois assistam de novo.

Comentários (2)

Lucas Vitoriano | terça-feira, 27 de Dezembro de 2011 - 14:50

Crítica perfeita, "A Passagem" é uma das obras que lembro os detalhes quando menos espero, cada cena curta da obra é um transe incrível.

Faça login para comentar.