Saltar para o conteúdo

Críticas

Cineplayers

Ressignificação narrativa

9,0

A cerimônia de iniciação feminina que abre Pássaros de Verão nos arremessa para um lugar imaginado dentro do que vimos anteriormente apresentado por Ciro Guerra, indicado ao Oscar pelo transcendental O Abraço da Serpente. Nos idos dos anos 60, longe da capital colombiana, uma família de raízes ancestrais indígenas promove a emancipação da jovem Zaida, que entra na maioridade em um ritual que define seu futuro e o de sua família, ao aceitar a corte de Rapayet, encantado por ela. Essa dança inicial entre os ainda jovens protagonistas promove um elo que seria sacramentado a base de um dote que só pode ser pago graças a uma negociação rápida de venda de folhas de cannabis. Ciro dessa vez assina a direção junto com Cristina Gallego, e seu roteiro costura de maneira discreta quase em tom professoral o nascimento do tráfico de drogas que uniu Colômbia e EUA.

Através de uma linguagem fabular, que incluem a apresentação de sua narrativa em capítulos a ordenar as passagens de tempo e de camadas, o casal de autores também veste sua aula magna sobre o início de uma parceria com um visual que remeta tanto às fábulas quanto aos contos indígenas locais, explorando as cores, os cenários e as luzes para uma experiência de imersão conjunta, que elabora paralelamente o caráter trágico a essa moldura de sonho, reafirmando o olhar antropológico que apresentou Ciro. Essa ambiência não apenas é descrita sutilmente como o início do fim de uma era de manutenção das tradições, como também deflagra um novo tempo onde se corrompe principalmente as relações pessoais, familiares e afetivas.

Almejando também um lugar no panteão da criação de clãs históricos, o roteiro nos apresenta a um universo que se pretende inovador e com apreço ao feminino desde a sequência inicial. Coerente ao promover uma ancestralidade ligada especificamente a mulher, o filme apresenta uma série de homens em posições de comando porém todos submissos a Ursula (vivida com impacto por Carmina Martinez), mãe de Zaida e figura central na formulação de uma nova ordem que o longa trata de apresentar. São apenas duas personagens femininas relevantes, e não é preciso mais do que isso para recriar uma tradição quase exclusivamente ligada ao masculino ser reconfigurada em um lugar de gênese.

Assim que é compreendido de quais mãos estão os dados da condução dos eventos, os mais tradicionais sentimentos humanos se fazem presentes, filtrando a diferença de gêneros da concepção do projeto para atribuir a ganância a qualquer ser humano com ânsia de poder. O filme então passa a trabalhar em uma cartilha mais tradicional, transformando o aspecto sexual em uma camada de complexidade a um universo em criação, mas que só reflete os erros cometidos em todas as outras associações criminosas. E o ponto de partida, que partiu da tentativa de provar uma intenção de compromisso através de um dote, transmuta-se em gradativo banho de sangue sem escolher lados.

Em determinado momento do roteiro, a família de Rapayet e Zaida constituem pra si um símbolo da fugacidade das relações de poder que observamos até hoje entre asseclas: uma mansão erguida no deserto é a metáfora acertada que representa o quão transitória são as relações de poder entre bandidos. Aparentemente imponente e definitiva, o trabalho de Angélica Perea na direção de arte é um mastodonte cênico que funciona à perfeição aos seus propósitos, de explicitar aquela organização. Com a ajuda da fotografia de David Gallego, um visual que passeia entre o realismo cru e uma visão onírica de um mundo em recente colapso complementa o trabalho dos autores.

Ainda que aponte para um entendimento menos arriscado da narrativa que propõe investigar, Ciro e Cristina ainda oxigenam dois gêneros em um, e ainda desdobram uma nova fatia acerca da cinematografia de risco que estão criando. Com um apelo positivo ao feminino, uma versão menos hermética sobre a fabulação no cinema contemporâneo e a incursão em zona popular de tradição narrativa, Pássaros de Verão consegue equilibrar seus elementos e imprimir unidade a passagens de entendimento quase antagônicas, e o resultado é uma repaginação sobre signos tradicionais de representação narrativa, que saem do longa renovando a todos. 

Comentários (0)

Faça login para comentar.