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Críticas

Cineplayers

O mito do cowboy encarnado de forma quixotesca, compondo uma alegoria ao sonho americano.

10,0

Gênero cinematográfico por excelência, foi justamente o western, este que Clint Eastwood define como a forma de arte genuinamente norte-americana, o mais simbólico e emblemático dos territórios para a criação de lendas no cinema. E a figura do cowboy, seu estandarte, seu mito definitivo.  Este arquétipo do herói americano, do homem virtuoso e destemido penetrou no imaginário coletivo dos EUA (e sem dúvida mundial também), de modo que sua imagem passou a ser uma referência de status, de independência e autoconfiança, de um modo de vida livre e atraente. Tamanha é a carga simbólica intrínseca ao modelo do cowboy, este já foi motivo de campanhas publicitárias tão vastas, agregando valor em desde marcas de jeans até cigarros, e que mesmo depois de tantos anos, permanecem ainda inesquecíveis.

No entanto, um dos mais belos e premiados filmes da história de Hollywood a tratar da figura do cowboy no imaginário não é um western. Tampouco sequer há um cowboy de verdade no enredo. Grande ganhador do Oscar de 1970 (melhor filme, melhor diretor, melhor roteiro adaptado), Perdidos na Noite conta a saga de Joe Buck (Jon Voight), um jovem ingênuo e sonhador do interior do Texas que abandona um emprego em uma lanchonete para, vestindo um traje de cowboy, tentar ganhar a vida em Nova York como garoto de programa. Sumariamente, é o conto do jovem iludido que parte de sua terra natal em busca da cidade grande e das oportunidades.  Personificando a imagem idealizada que aprendeu vendo filmes com John Wayne, chegando lá evidentemente as coisas não acontecem como o planejado, a dura realidade vai de encontro ao protagonista, e lembranças e traumas mal resolvidos no passado vêm à tona demonstrando toda a fragilidade de Joe, um “cowboy” perdido na selva de pedra. Completamente mal-adaptado à sociedade, irá encontrar a redenção na única relação pessoal genuína que pode realizar, esta na amizade com o marginal sem-teto Ratso (Dustin Hoffman).

O filme foi dirigido pelo inglês John Schlesinger, fato que já explica grande parte da linguagem peculiar do filme – repleto de flashbacks e fluxos de consciência bem à moda do filme de Fellini, principalmente no que se refere às lembranças de experiências religiosas do protagonista. Schlesinger é oriundo da cena britânica dos fins da década de 50, de onde surgiu o movimento de vanguarda chamado “Free-Cinema”, que mais tarde, já início da década de 60, teve papel decisivo no então movimento “British New Wave”, algo como a Nouvelle Vague dos ingleses. Além de propor certa quebra da linguagem cinematográfica tradicional, as produções do período davam vez aos “young angry men”, personagens jovens, rebeldes e incompreendidos, marginalizados e errantes. O filme máximo deste cinema inglês é Tudo Começou no Sábado (Saturday Night and Sunday Morning), de Karel Weisz. Partindo deste celeiro, Schlesinger rumou para a América, onde em Perdidos na Noite compôs sua obra máxima.

O filme é apresentado por meio de uma abordagem de formas poéticas, e de maneira alguma de modo panfletário ou moralista é tratada a questão da identificação e da projeção que o público estabelece ao entrar em contato com as grandes histórias e heróis do cinema. Magistralmente o diretor coloca como cidadãos comuns podem incorporar a fantasia, o grande sonho que é o cinema, o desejo de triunfar na vida baseando-se em personagens irreais da tela grande. Mas foca-se em especial na relação com o western (tanto que o maior diretor do gênero, John Ford, é conhecido como o “Homero” do cinema). De Jean Luc-Godard (que chorou ao ver no cinema Rastros de Ódio, um clássico do estilo) a David Lynch (que em Cidade dos Sonhos, seu filme que versa sobre imaginário, sonhos e ambição em Hollywood, também plantou lá o símbolo do cowboy), não há como negar o apelo do gênero. Malgrado este aspecto do filme, Perdidos na Noite ainda conseguiu a façanha de ser um dos grandes precursores de todo o “American Art Film” que viria nos anos 70 nos EUA com diretores como Peter Bogdanovich, Francis F. Coppola, Martin Scorsese entre outros, que em uma carga mais autoral, realizariam produções de temática mais crua e pesada, tratando de temas urbanos urgentes, como drogas e prostituição. Em 1969, surpreendentemente a academia premiava este filme que exibia uso explícito de drogas, prostituição masculina, homossexualismo e sexo oral, promovendo uma quebra de tabus sem precedentes na indústria americana. Assim como os contemporâneos Sem Destino e Bonnie & Clyde - Uma Rajada de Balas, Perdidos na Noite era um reflexo do seu tempo, das transformações dos valores sociais que tomaram forma a partir daquela década. E o cinema americano abria espaço para personagens principais que, opondo-se ao típico herói do cinema clássico, pela primeira vez mostravam-se frágeis e indecisos, ou como Fernando Mascarello afirma em seu livro "História do Cinema Mundial", a Hollywood daquele período dava vazão ao protagonista "não-afirmativo", sem objetivos claros.

As atuações de Jon Voight e Dustin Hoffman, absolutamente inesquecíveis, freqüentemente são apontadas como o grande ponto alto de suas carreias (e, falando em Hoffman, não quer dizer pouca coisa).  Tão marcantes e inesquecíveis que fazem deste filme um dos mais lembrados e parodiados não só no cinema, mas da cultura pop em geral. A frase “I’m walking here”, que dada altura do filme o coxo personagem Ratso exclama ao atravessar a rua já foi incluída em diversos filmes posteriores, presente até em De Volta para o Futuro 2. As cenas de Joe Buck caminhando deslocado pelas ruas de Nova York ao som de “Everybody’s Talking’”, de Harry Nilsson, foram parodiadas em Borat. O filme ainda inspirou o clipe da música “Devil’s Haircut”, do cantor Beck. Porém talvez nada disso possa exemplificar melhor a aura e o sentimento deste longa-metragem da que é, de acordo com a opinião deste editor, a mais bela música tema de um filme já realizada. Composta por John Barry, “Midnight Cowboy Theme”, com sua melodia entoada na harmônica de boca, representa tudo sobre o que o filme fala: a solidão de cada indivíduo impulsionado por seus sonhos frente à melancolia da vida.

Comentários (4)

Marcus Almeida | quinta-feira, 02 de Fevereiro de 2012 - 22:51

Crítica perfeita para um filme perfeito.

Gustavo Santos de Araújo | terça-feira, 06 de Agosto de 2013 - 23:58

Filme E-S-P-E-T-A-C-U-L-A-R...A melhor performance de Dustin Hoffman, roteiro maduro dosado e uma história triste.

ana paula mello | sábado, 04 de Outubro de 2014 - 18:24

Eu também amo este filme ! Curiosamente, no mesmo ano em ganhou como melhor filme, John Wayne ganhou como melhor ator. Ou seja, acabou sendo uma homenagem indireta ao filme.

Reginaldo Almeida | terça-feira, 29 de Setembro de 2015 - 17:28

Nota 10. Um dos meus filmes preferidos.

Verdade Ana Paula. Joe Buck fã John Wayne no filme, mas acho que Jon Voight ou Dustin Hoffman merecia aquele oscar. Mas a homenagem indireta foi legal.

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