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Críticas

Cineplayers

Como pensar sobre um símbolo que deixou de ser homem?

8,0

Poderíamos começar com outra pergunta, até mais apropriada: como é que um homem morto há 40 anos continua mais do que vivo, reinventado? A investigação sobre a construção dessa representação, que ajudada pelas teias da cultura pop torna-se fluida e adaptável aos mais diferentes propósitos e interpretações se consolida a cada dia como símbolo contemporâneo do termo antes divinizado, o mito.

Filme é o que não falta pra nos ajudar a criar um entendimento, uma opinião sobre Che Guevara. Além de Diários de Motocicleta, de Walter Salles, e às vésperas da estréia do trabalho de Steve Soderbergh, que antes se chamava Che e agora se desmembrou em The Argentine e Guerilla, Adriana Mariño e Douglas Duarte falaram sobre Che também, e conseguiram escapar do lugar-comum de histórias heroicizantes sobre o argentino que nasceu Ernesto.

Personal Che é um título que cai bem, nesse que é um documentário interessado em encontrar as razões e as não-razões da força de um mito cercado por tão diversas interpretações que hoje talvez seja difícil chegar perto de uma verdade sobre ele. Depois de ir à Bolívia para uma reportagem sobre a criação de um roteiro turístico que cobre os caminhos dos últimos dias do guerrilheiro, Douglas entrou em contato com a mitificação viva e em processo: a transmutação do guerrilheiro em santo. Então foi só imaginar quantos Ches existiriam por aí e sair perguntando, e perguntando muito. Acadêmicos, jornalistas, designers, fotógrafos, e gente como eu e você: todos têm uma opinião sobre ele.

Envolto nos problemas do maniqueísmo e da força simbólica de juventude e revolução que seu personagem inspira até hoje, as discussões sobre quem realmente foi Guevara não conseguem escapar da passionalidade. Cubanos exilados após a tomada revolucionária da ilha não o chamam de menos que assassino, enquanto em Cuba hoje ainda se usa a mesma cartilha do pós-revolução na tentativa de criar ‘los hombres nuevos que imaginó el Che’, e aprendendo-se a admirar Fidel como um pai. No Líbano de muitos combates, uma ópera sobre a vida do guerrilheiro que foi símbolo de mudanças vem bem a calhar; e porque não ser um símbolo torto de afirmação da nacionalidade numa Alemanha neonazista, quando é sabido que Che não consegui levar a revolução para su mamá argentina?

Para complicar ainda mais esse jogo existe a massificação de uma imagem, aquele retrato de Alberto Korda, aquela mesma expressão de tantas camisetas, reimpressa e reiventada, que ajudou a mumificar a imagem – viva – de um homem. Semblante meio cerrado, talvez pensativo, e a masculinidade latina pulsando na pele e nos cabelos: criava-se assim a imagem perene de Che, em cujos olhos muitas pessoas enxergam mensagens sobre liberdade, luta por direitos e igualdade. Mas a significação dela pode ser alterada a qualquer momento, é só ouvir o discurso do cético fotógrafo italiano Oliviero Toscani, que diz ter sido esta foto a maior façanha de Che e nada mais.

Da popularização de sua imagem o que sobressai é a idéia de vida, de um personagem que nunca morreu já que vive por aí, na cabeça e na boca de tanta gente. Sobre isso o episódio sobre a família do cubano Carlos Valverde - que elevou o guerrilheiro à categoria de exemplo de vida – e o choque causado quando os documentaristas lhe mostram a foto do corpo morto do comandante (que a família nunca tinha visto) se abateu sobre eles como a notícia de uma morte recente. Talvez a quebra de uma certeza. Talvez a constatação do caráter humano por trás da imagem. E buscar o humano, as contradições inerentes a essência e manutenção da figura de um líder, é o que leva Douglas e Adriana a deixarem a esfera da observação documental e interagem com os entrevistados, provocando a reflexão. E expondo a necessidade humana de ídolos e de algozes.

Confesso que foi desconfortável em alguns momentos. No caso da senhora boliviana que vai ao túmulo de Che levar flores e acender vela na busca pela benção e o sucesso de uma viagem importante, ouvir alguém falar do ateísmo explanado Del Comandante soa grosseiro. Mas o incômodo passa logo, e o que sobra é a seqüência final, todos os entrevistados contribuindo com um elemento diferente para a composição de um painel onde se tenta dizer que a despeito das paixões, Ernesto Guevara de la Serna nasceu, morreu, e foi gente. Como eu e você.

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