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Críticas

Cineplayers

A culpa é doença sem cura.

7,0
Petra é a personagem-título do longa de Jaime Rosales, e é um nome de origem grega. Quando observamos a ambiência do filme assistido nessa segunda no Cine Ceará, fica claro o que o próprio título já tinha pincelado, com cenários naturais de pedra com influências do que o mundo exporta como sendo tradicionalmente grego. Nada disso provavelmente não seria construído se o diretor não tivesse o interesse de investigar tradições da dramaturgia local, ligadas a tragédias avassaladoras desde seus mitos. Conforme a trama avança e o rocambole de acontecimentos não para de suceder uns aos outros, podemos agradecer a escolha generalizada pela contenção, tendo em vista o grau profundo e nada sóbrio da trama em si.

O roteiro escrito a seis mãos (Rosales, Clara, Roquete) traça esse caminho rumo às convenções de arquétipos das tragédias familiares que a historiografia grega foi formada. Muitos desses elementos foram inclusive incorporados à teledramaturgia, o que nos faz ter a impressão de estar assistindo a uma obra que poderia ser traduzida para uma trama global, talvez com consequências menos radicais. Mas como já dito, elenco se esforça para tirar qualquer peso de entonação de suas falas e as próprias escolhas da mise-en-scène são controladas para um olhar mais introspectivo e observador, com uma busca por um lugar detalhista na análise imagética.

O filme gira em torno de uma rede que acaba ligando todos os personagens a Jaume, uma misantropo que deixa muito clara sua desaprovação integral a tudo e a todos, praticamente sem restrição. A forma como trata esposa, filho e empregados, sempre em tom naturalista e comedido para declarar as coisas mais pérfidas, coloca o espectador contra esse personagem de imediato. Mas Petra precisa de respostas para as questões que sua falecida mãe não respondeu, e Lucas precisa sair da sombra de um pai que o despreza; no meio do caminho, esses três personagens se encontrarão. Com frases que promovem intrincadas reflexões e um rigor estético pouco usual para um projeto aparentemente tão intimista, logo o tom novelesco passa a ser encarado como uma forma de elevar esse projeto íntimo.

O filme acaba promovendo ainda fora do campo algumas observações, como a que promove uma sofisticação das imagens em detrimento a uma narrativa que costura sentimentos e querências de valor popular; esse equilibro tende a elevar o todo. Rosales passeia com sua câmera de maneira abertamente intrusa, e leva o público a ler cada detalhe do cenário enquanto sua trama desenrola. Os espaços cênicos trazem uma leitura especial sobre os personagens ou o teor da cena em si, e raramente a imagem se encontra num tripé; com suavidade, o diretor de Hermosa Juventud prova seu rigor com escolhas ousadas para um drama familiar, num fluxo de planos longos que conferem um caráter vivo a um projeto que poderia ser apenas um melodrama radiofônico traduzido para o cinema.

O espetacular elenco inclui duas das melhores atrizes espanholas, uma de hoje e outra de sempre, Barbara Lennie e Marisa Paredes. Os homens protagonistas são Àlex Brendemühl e Juan Botey, e os quatro promovem uma sintonia fina de absorção das diretrizes de um autor, que tira todas as potências e equaliza suas erupções para o interior do humano. Todo o resto do elenco vai para a mesma direção, o que torna esse trabalho coletivo dos mais preciosos. Com isso, carga emotiva pesada e represada durante toda a projeção nunca explode, porque o filme busca muito mais as ações que as reações; os atos convergem para definir as pessoas, e não para gerarem retaliações, ainda que inevitavelmente a vida tome conta de dar seus trocos.

O filme acaba se excedendo em sua intenção de amarrar os nós e deixar o rastro de sujeira cada vez maior e isso tira um tanto do impacto de sua realização, mas Rosales passa adiante uma obra acertadamente gelada sobre sentimentos muito quentes, num processo de equilíbrio e consciência bastante raro de encontrar no cinema. Frases como a que intitulam o texto, ditas de maneira tão secas e particulares, criam uma melancolia positiva ao longa. 

Filme visto no Cine Ceará 2018

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