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Críticas

Cineplayers

A Face da Fênix.

8,5

Impiedoso enquanto um drama pessoal sobre uma sobrevivente do nazismo e brutal enquanto registro histórico dos acontecimentos vinculados ao Holocausto, Christian Petzold visita as memórias de Auschwitz e explana uma história fantasmagórica em sentido psicológico a partir das ruínas do pós guerra que desfigurou uma nação; engendrada ainda na desfiguração da face de uma mulher vítima da inconsequência. A partir desse ponto, conciliada na magnitude moral contrastada no caráter de seus personagens e entre a dinâmica relacional entre um casal em face da violência da guerra, o filme escandaliza uma revolta consoante ao desejo de reconquista. A identidade ruiu.

Phoenix é um filme filmado entre sombras. O contorno turvo da fotografia parece se adequar à retratação da Alemanha sob cinzas, se reerguendo em becos, discutida em bares. Tal como a Alemanha em busca de redenção, Nelly, nossa protagonista, busca igualmente se reerguer após a violência sofrida que lhe rendeu uma desfiguração facial. Tal como uma fênix, a mulher e o país se alçam das cinzas. Ela precisou passar por procedimentos cirúrgicos que lhe renderam um novo rosto. A despersonalização é manifesta no olhar e nos gestos de uma personagem buscando se reconhecer através de uma máscara permanente. Deixou de se Nelly, tornou-se Esther. É o vislumbre que acompanhamos num drama de reconciliação pessoal.

Infeliz por seu novo rosto, Esther inicia uma busca atrás de seu marido Johnny, um pianista que desaparecera. Ao saber de seu paradeiro, ela o encontra e ele não a reconhece. O objetivo do homem, ao contrário do dela, visa uma outra conquista, essa que permeia a obra e ascende os fantasmas de passados próximos, íntimos na indulgência. Juntos arquitetam um plano, o que evoca a reconstrução da personalidade da mulher que se perdera. Phoenix é um filme abismal que diz respeito cruelmente a comportamentos humanos. Estrutura-se na redenção de uma nação e representa-se na pele de uma mulher: tornar-se outro ou ser quem outrora fora? A dúvida paira e se delonga até o ato final arrebatador.

O cineasta Christian Petzold parece tratar dos temas de seu país como se estivesse num divã: discutiu emigração em Jericó (Jerichow, 2008) e heranças políticas no majestoso Bárbara (Barbara, 2012). Aqui em Phoenix levanta aspectos do pós guerra e o quanto a Alemanha buscou transformar-se. Em ambos os filmes há algo em comum: a presença de Nina Hoss, atriz sublime que assume a frente dos projetos com eficiência, sendo uma das grandes intérpretes do cinema contemporâneo. Dessa vez vive uma judia sobrevivente nos arredores de Berlim. É ótimo acompanhar a atriz habituando-se a uma persona dúbia e caminhar quase se arrastando. Entre madrugadas, sai às escondidas atrás de seu marido, dada a um acerto de contas implausível, incerta a respeito da responsabilidade deste por sua atual condição. Mas ela ainda o ama e isso se soma as dúvidas dispostas pelo roteiro.

Segundo um personagem, alguns alemães desejariam um novo rosto após tudo o que fizeram durante o nazismo. Simbolicamente, as bandagens deixam o rosto de Nelly e nos apresenta Esther. A nova feição é exposta. Agora ninguém a reconhece e ela pode iniciar uma nova história, mas o passado é impositivo e se envolve com dinheiro e paixão. Na obscuridade estética, o filme prima pelo texto indeterminado, com clima de constante ameaça e acusações duvidosas. A obra flerta com o noir e revela-se sem pressa.

O vermelho anuncia na placa da boate Phoenix a reunião de vidas marginalizadas em meio à escuridão. É para lá que Esther vai. Entre fantasmas de lembranças recentes, entre as dores que a saudade indevida envolve, emocionalmente complexa, Nelly/Esther percorre os becos e assume-se envolvida num plano mirabolante. Para nós, espectadores, resta acompanhar incrédulos seu passo a passo. A vemos se desenvolver, a vemos se modelar, se remontar e se readequar, até o ponto em que finalmente desvela-se capaz de levantar voo sozinha, mas antes profere um canto acompanhando uma melodia, uma das mais dolorosas de se ouvir.

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