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Pixote: A Lei do Mais Fraco

(Pixote: A Lei do Mais Fraco, 1981)
7,8
Média
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Críticas

Cineplayers

Melancolia e tragédia em um dos nossos mais contundentes filmes-denúncia

8,0

Em 19 de outubro de 1974, ocorreu a terrível Operação Camanducaia: policiais do Departamento Estadual de Investigações Criminais (DEIC) de São Paulo selecionaram noventa e sete menores detidos, os embarcaram em dois ônibus e, uma vez chegando na Rodovia Fernão Dias, perto da fronteira com Minas Gerais, os despiram, promoveram sessões de espancamento e ameaçaram de morte. Os jovens em pânico fugiram pelas estradas da região até chegarem na cidade de Camanducaia, onde sua presença causou pânico generalizado. Após novas detenções e apuração dos fatos, o Juiz responsável pelo caso constatou que entre 10 e 15 deles tinham a ficha limpa, tendo sido abandonado pelos pais. Mesmo com as investigações revelando mentores da operação, o caso nunca foi a julgamento e ninguém foi preso.

Trabalhando há vinte anos no ofício de jornalista policial, José Louzeiro teve sua reportagem censurada pelo regime militar brasileiro, quando o escândalo se tornava um símbolo de violação nos direitos humanos no Brasil. Após escrever os romances Lúcio Flávio, O Passageiro da Agonia, sobre o famoso assaltante de bancos Lúcio Flávio Vilar Lírio, que expôs em falas a corrupção do regime militar, e o censurado Aracelli, Meu Amor, sobre dois filhos da elite do Espírito Santo que assassinaram barbaramente uma criança, Louzeiro abandonou a matéria por escrever o livro Infância dos Mortos; esses livros, bem como o posterior Em Carne Viva, que referência o caso de Zuzu e Stuart Angel, foram fundamentais para a consolidção do romance-reportagem no Brasil.

O diretor argentino Hector Babenco, que iniciou sua carreira na década de setenta e a fez no Brasil analisando situações sociais do nosso país, em seu segundo longa adaptou o romance homônimo de Louzeiro sobre Lúcio Flávio estrelando Reginaldo Faria, se tornou um clássico do nosso cinema policial, mostrando como um bandido carismático sucedia em um país caótico através de assaltos ousados e "molhando a mão" da polícia. Mas nada preparou o Brasil (e o mundo) quando, em 1980, colaborou novamente com o repórter-romancista e de lá tirou Pixote, A Lei do Mais Fraco.

O filme se diferencia um tanto de suas inspirações, não intentando biografar o ocorrido em Camanducaia, mas enquadrando a história de Pixote, um jovem morador de rua que aos onze anos é enviado para um reformatório, onde sofre constantes abusos e ameaças de estupro e, após a morte de um dos detentos, acaba fugindo de lá com os amigos Chico e o jovem homossexual apelidado de Lilica. Na ruas, Pixote comete seu primeiros crimes e encontra figuras como a prostituta Sueli (Marília Pêra, de Central do Brasil), por quem descobre alguma espécie de afeição no meio daquele mundo degradado.

Logo antes de iniciar a história, Babenco aparece como ele mesmo em frente a uma favela, explicando dados sobre o Brasil e a história que será exibida a seguir, apesar de ficcional, é inspirada em muitas histórias reais. Uma alusão documental com forte e triste carga de verdade - pensemos na icônica capa da revista VEJA que denunciava a fome no Nordeste ou em filmes-denúncia como Pra Frente, Brasil e entenderemos como, ao longo dos anos setenta, imprensa e indústria cultural tiveram tremenda importância social ao escancarar uma realidade que o regime vigente insistia em negar nos tempos de "milagre econômico" e "moral e bons costumes".

Apesar do início lento que descreve a experiência opressora nos refarmatórios (assumidamente inspirada em centros como a FEBEM, hoje Fundação Casa), Pixote se tornou mais famoso por conta de seu miolo central, onde conhecemos a dura vivência nas ruas de seu protagonista e como se dá a construção social da figura do marginal. De início inocente, vemos que, para sobreviver, Pixote não irá tardar a largar mão da moral e, em diferentes contextos, cometerá dois assassinatos que maculam sua alma para sempre.

Babenco disse ter escolhido o intérprete do protagonista Fernando Ramos da Silva justamente pelo olhar de inocência transmitido pelo ator; isso favorece, no meio do frio realismo do filme, a ressaltar Pixote como um personagem que parece ter saído do cinema de Visconti, como em Rocco e Seus Irmãos: uma figura frágil e trágica, cuja resposta às manchas e mazelas do mundo é justamente ser por ele corrompido.

Dentro dessa toada neorrealista, cheia de locações reais e não atores, com fronteiras tênues entre ficção e documentário, dando origem a cenas como os jovens moradores de rua em uma praça, assistindo a um culto evangélico, uma cena de busca por epifania em meio à miséria que ainda soa atual. Marília Pêra, atriz mais famosa e com mais vivência teatral em cena, eleva o tom de tragédia por representar o oposto de Pixote: sua Sueli é uma performista, alguém que se descola do mundo onde vive com uma imagem que não vive de fato, e que entra em choque justamente com um personagem "carne viva" como Pixote. A relação conflituosa entre ela e o bando carrega consigo justamente uma carga de que a representação mais clássica já não faz sentido em certos contextos e novas construções dramatúrgicas são necessárias de serem buscadas.

O realismo do filme sabe da sua amargura, mas não esquece de sua humanidade, e é interessante notar como ele persegue pessoas que almejam uma vida melhor sem jamais passar perto de conseguirem e podem contar apenas com almas igualmente quebradas para alguma espécie de consolo. Com isso, cenas como Sueli rejeitando Pixote, que busca por colo, figuram como algumas das mais tristes da nossa cinematografia, pois mostram pessoas miseráveis e à beira do abismo, mas ainda ansiando e temendo conceitos simples como afeição. A câmera acompanhando a disposição de corpos em processo de busca e fuga dispensam maiores textos e discursos e cristaliza em si uma potência dessa compreensão de nossas figuras sociais arquetípicas como trágicas por essência, dramaturgicamente falando, ícones que não são os primeiros nem os últimos de seu gênero, mas que de alguma forma deixaram um legado indelével.

Pixote caiu como uma bomba no cenário mundial: recebeu aclamação instantânea da crítica (mesmo os exigentes e rabugentos Roger Ebert e Pauline Kael cobriram a obra de elogios), foi cogitado para o Oscar de Filme Estrangeiro (e infelizmente desclassificado por questões técnicas relativas à data) e conquistou artistas como os diretores Harmony Korine (Gummo), Spike Lee (Faça a Coisa Certa) e o cantor Nick Cave (que baseou sua canção "Foi na Cruz" em uma das cenas mais tristes do filme).

Em entrevistas e reuniões posteriores do elenco, muito se lamenta que Fernando Ramos da Silva fracassou como ator por seu semi-analfabetismo atrapalhar no processo de decorar textos e acabou morto pela polícia em Diadema, aos 19 anos, após cair em uma vida de crimes, levando oito tiros à queima-roupa, com os policiais responsáveis posteriomente nunca julgados e apenas demitidos da polícia. A história, inspirada por um crime, emocionou o mundo, apenas para terminar em um novo crime. De alguma forma, Pixote guarda em si justamente a melancolia dos melhores filmes-denúncia, onde busca-se a melhoria da situação, mas também enxerga-se as mesmas como uma tragédia incontornável de um mundo incapaz de olhar para os seus excetos em grandes arroubos ou grandes tragédias. Justamente por isso, continua a figurar como um dos exemplos mais contudentes do assunto a sair da filmografia essencialmente política do cinema brasileiro.

Texto integrante da série Clássicos Brasileiros

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